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Netflix: Pelé, futebolisticamente desonesto, historicamente frívolo, esteticamente belo

A série se vende como um produto para quem gosta de futebol e de história, mas acaba sendo muito mais um documentário motivacional

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Farmasi

É do cronista esportivo Paulo César Vasconcelos a fala que define o documentário “Pelé” (Netflix, 2021): – “Pra muita gente, vai se olhar menos [para] o que foi feito dentro de campo e mais para fora. E fora, ele [Pelé] será caracterizado por uma ausência de posicionamento político que vai pesar muito contra ele”.

O documentário é produzido pela Pitch Productions que, desde 2004, desenvolve um material inspiracional e que adota o esporte como cenário. Portanto, não é de interesse dessa empresa um olhar mais futebolístico para a história de Pelé ou mesmo um mergulho na história do Brasil a partir de um de seus maiores símbolos. O interesse é mostrar como o esporte é capaz de gerar heróis e como eles foram capazes de transpor dificuldades e se sagrar campeões. Portanto, se você busca um documentário motivacional será bem servido. Mas se busca qualquer coisa além como, por exemplo, o futebol, pode sair bastante decepcionado.

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O documentário é dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas, que já fizeram o muito bom “Crossing the Line” (2016) que conta a superação do atleta Danny Harris em sua luta contra as drogas e o nem tão bom assim “Kenny” (2017), que conta a história do talvez maior atacante da Inglaterra e Escócia e herói absoluto do Liverpoll de 1977, Kenny Dalglish. Em “Pelé”, a assinatura de seus diretores é marcante. Todas as suas obras são feitas para se passar em sala de aula a fim de inspirar jovens atletas e nesse documentário não foi diferente. Narra a história de Pelé de sua pobre infância em Minas Gerais, seu apogeu durante o início da década de 60, e sua redenção na Copa de 1970 após o fracasso da seleção brasileira em 1966 e os desdobramentos da ditadura militar recaírem sobre suas costas.

A narrativa do documentário olha muito mais para a construção do mito do que para o atleta propriamente dito. Não há espaço para outros personagens importantes a não ser que estejam falando diretamente sobre o próprio Pelé (Gilberto Gil, Fernando Henrique Cardoso, Delfim Neto, Rivelino, Jairzinho, Gérson e Benedita da Silva). Há momentos em que dá a impressão de que o Brasil só se desenvolveu na década de 1950 por causa do mais ilustre dono de uma camisa 10 da história do futebol ou que a ditadura militar só endureceu em 1968 porque Pelé era amigo do ditador Médici e preferiu se alienar. E não para por aí, chega a quase dizer que Deus não quis o Brasil campeão em 1966, algo como: somente Deus era maior que Pelé naquele momento. E as coisas mais comuns de um ser humano de carne e osso são tão rapidamente abordadas que nem nos damos conta de que Pelé está refletindo sobre seus relacionamentos adúlteros e os filhos que teve em suas “puladas de cerca”.

Quando o documentário se lembra que está falando de futebol, faz de forma desonesta. A Copa de 1962, em que Pelé se lesiona no segundo jogo, falam de Amarildo, seu substituto, e sequer mencionam Garrincha (que aparece em duas fotos ao longo de todo o documentário, uma comemorando um gol de Amarildo e outra comemorando o título ao redor de Pelé). Até mesmo quando se fala de adversários, somente tem nome aquele jogador com camisa 10, como é o caso do craque moçambicano e ídolo da seleção portuguesa, Eusébio (mas fazem questão de mostrar que ele estava impedido naquela fatídica eliminação do Brasil já na primeira fase da Copa de 1966).

Se a seleção vai bem, é por causa de Pelé, se vai mal, é pela falta de Pelé. Quando não tem Pelé mas tem seleção brasileira indo bem, é porque Pelé abençoou. E isso fica absurdamente evidente quando, na segunda hora de documentário, há um esforço gigantesco em diminuir a importância de João Saldanha para a seleção canarinho de 1970. Em nenhum momento se ergue a história dele nem como jornalista, nem como militante do Partido Comunista e tampouco como o técnico que levou o Botafogo a ser campeão em 1967 e à classificação da Seleção para a Copa de 1970. O próprio Pelé reconta uma história que até hoje não é clara afirmando que Saldanha era bom na fala e ruim no futebol e por isso foi afastado. O documentário chega a apresentar muito rapidamente outros condicionantes como a questão da ditadura militar entender que aquela Copa era um assunto de Estado e também o propósito de Saldanha em modernizar o futebol brasileiro, o que talvez obrigaria colocar Pelé no banco se fosse necessário. Como Pelé era como um Deus, João Saldanha teve que pagar penitência.

O documentário é artisticamente muito bem feito. A cena de Pelé num andador e a cena em que ele batuca uma caixa de engraxate são de provocar lágrimas. Há também resgates de momentos e jogos em que o tratamento das imagens históricas são um deleite para os olhos. Mas o melhor fica para os comentários dos cronistas esportivos Trajano, Vasconcelos e Kfouri. Aliás, os comentários de Juca Kfouri são os melhores. Frases como “Pelé tem os momentos de não-gol mais fabulosos do planeta” e “Pelé não tinha as mesmas garantias que Muhammed Ali tinha para agir de igual maneira, ditaduras são ditaduras”. Trajano também dá uma bela contribuição ao refletir sobre como todo sentimento crítico e de esquerda contra o desempenho do Brasil na Copa de 1970 se curvou diante do brilhantismo daquela seleção. Kfouri completa o pensamento de Trajano: “A vitória da Copa foi visivelmente explorada pelo governo militar, mas o fato é que o povo nunca imputou aquela vitória ao sanguinário ditador Médici”. Enfim, os aspectos históricos estão lá, ainda que de maneira frívola, mas o documentário sempre que se aproxima de uma polêmica política, devolve o espectador para as quatro linhas. É no campo que Pelé irá encontrar sua redenção e trazer para o Brasil um alívio para os momentos de chumbo ao ser tricampeão.

VEREDITO: a série se vende como um produto para quem gosta de futebol e de história, mas acaba sendo muito mais um documentário motivacional. Seus exageros e “licenças poéticas” acabam transformando a obra em algo futebolisticamente desonesto, historicamente frívolo, mas esteticamente belo. NOTA: 6,5.

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