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SOUL (Disney/Pixar, 2020) – Filosofia servindo ao bom entretenimento

Um filme sobre especulações filosóficas para toda a família, muito Jazz e, acima de tudo, um ótimo entretenimento.

Publicado

em

Rui Barbosa


Há tempos que Disney e Pixar usam uma linguagem que dialoga com crianças e adultos simultaneamente. Para essa forma de falar, parece que não há temas pesados demais que não devam ser abordados desde que elas façam parte de nossa natureza humana. Temas como morte (Coco: A Vida é uma Festa, 2017) e depressão (Divertidamente, 2015), por exemplo, são muito bem desenvolvidos de forma que não fique tão complexo que uma criança não possa acompanhar e nem didático demais a ponto de entediar um adulto. O que nos faz pensar: há de fato, em Pixar, um filme infanto-juvenil ou a linguagem é um filme para toda a família? Há temas que devam ser escondidos de crianças ou adultos, como a morte, devido a sua complexidade e até mesmo correndo o risco de se provocar repugnância? E, principalmente: filme que tem classificação Livre tem que ser didático ou basta uma boa história?

Soul é, talvez, o mais filosófico dos filmes da Pixar. Se podemos abordar depressão e ansiedade para públicos infantis e adultos como em Divertidamente, por que não Filosofia? Isso nos permite encontrar diversas camadas de interpretação, ao mesmo tempo em que temos um bom entretenimento. Mesmo correndo o risco de acabarmos acreditando que o filme seja mais profundo do que realmente é. Temos ali: metafísica, existencialismo, niilismo, teoria do conhecimento e, claro, Jazz.

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O filme brinca com temas como pequenos prazeres em meio à massacrante jornada do ser humano numa cidade como Nova York, ao mesmo tempo que nos dá um vislumbre divertido de pré-vida e pós-morte.

Acompanhamos rapidamente um pouco da vida de Joe Gardner (Jamie Foxx), professor de música entediado com a quase total falta de talento de seus alunos e também um compulsivo amante do Jazz. No dia em que recebe efetivação em sua escola, também recebe o convite de tocar com, a rainha do Jazz, Dorothea Williams (Angela Bassett). Um dia feliz, mas tragicamente interrompido devido a queda de Joe em um bueiro aberto. A próxima coisa que ele sabe agora é que não mais possui carne e ossos, mas um azul ectoplásmico numa espécie de esteira rolante em algum lugar entre o Existir e o Além. Quando se dá conta, revolta-se com o destino manifesto daquelas almas e corre para a direção contrária. Até que cai e vai parar na Pré-Vida, sendo confundido com um médico que foi prêmio Nobel para ser mentor das almas que estão em preparação para a vida terrena. Ele ganha como aluno o 22 (Tina Fey), uma alma rebelde que há muito tempo resiste em ir para a Terra. Este é o Grande Antes. Um mundo supervisionado por seres abstratos que parecem ter saído de uma obra de Picasso onde quase todos se chamam Zé (no inglês, Jerry) – interpretados por Alice Braga, Richard Ayoade e Wes Studi.

O filme tem uma série de problemas, mas que serão incômodos somente se você o levar à sério demais. A noção de tempo entre o acidente de Joe e seu retorno, onde foi parar o médico que deveria ter ido para o Grande Antes, como é que o gato foi parar na esteira que leva para o Além Vida, e assim por diante. Mas estas questões são irrelevantes diante de uma história bem contada. Há um debate interessante sobre a “faísca”, o último distintivo – igual aos escoteiros – que falta para determinar a ida das almas para a Terra e do qual requer um mentor. Essa faísca é entendida por Joe como a verdadeira paixão de uma pessoa, já para 22 seria o próprio sentido e missão da vida.

Joe encontra seu caminho para a Terra, com 22 acidentalmente junto. Mas eles caem em corpos trocados. 22 no corpo de Joe, o músico no corpo de um gato. Aqui é que encontramos um desenho dos personagens tão bem feito que é uma diverção à parte. Todos os personagens, inclusive os secundários, são dotados de expressões físicas e emocionais incríveis. Conseguimos ver as mãos do virtuose ao tocar, o esforço nas veias do pescoço do cantor de metrô, a atmosfera de uma barbearia e os prazeres em descoberta por 22 no corpo de Joe. Com o Jazz dando a trilha sonora e também boa parte do enredo do personagem principal, a trilha sonora é outro deleite.

Há um arco na história que ficamos com o gosto de “quero mais”. Uma espécie de vale para onde vão as almas de seres vivos quando se desconectam da realidade. Enquanto alguns alucinam, outros vão se tornando uma espécie de monstro quando a depressão os imobiliza. Ali ocorre o encontro místico dos que atingem o nirvana ou coisa assim. Mas também ali a mente encontra calvário quando a rotina e a obcessão se tornam tão marcantes em nossa vida que praticamente é como se estivéssemos “mortos em vida”. Uma parte interessantíssima, mas que infelizmente foi bem superficialmente desenvolvida.

Joe Gardner é o primeiro protagonista negro da Pixar. Poderíamos dizer que é em resposta aos movimentos “Vidas Negras Importam” e “Oscar tão Branco” que vem denunciando o horror da conjuntura racial estadunidense, contudo, tal compreensão corre o risco de ser por demais superficial. São questões muito mais profundas e historicas, sobretudo em um Estados Unidos marcado por tantas segregações raciais. O que faz o filme, ao mesmo tempo, fruto de um momento conturbado e também um diálogo com a lamentável cultura segregacionista e seus movimentos de resistência. Mas há também uma pitada de cristianismo aqui, uma dose de budismo acolá e alguns temperos hippies. Tudo isto, entretanto, transcende nas mãos do competente diretor Peter Docter (que também dirigiu Toy Story 3 e Up: nas alturas).

VEREDITO: Soul é um deleitoso entretenimento para toda a família e aborda um conteúdo bastante filosófico sem a necessidade de ser complexo demais para sua compreensão. Aliás, Filosofia não precisa ser sinônimo de enfadonho ou algo inacessível para mentes, vamos dizer assim, normais. É um triunfo de conquistas técnicas e culturais, mas com defeitos em alguns desenvolvimentos de personagem. E, claro, um ótimo Jazz! NOTA: 9,5.

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