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A Voz Suprema do Blues: um show de interpretação, sobretudo de Chadwick Boseman

Continuando a série de indicados ao Oscar, disponíveis em streaming, A Voz Suprema do Blues é teatro puro graças às grandes atuações de seus atores

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Martin Luther – Enem

O cinema e o teatro estão num lugar bastante privilegiado no que diz respeito ao desenvolvimento cultural de um povo. Ele é possível somente quando a cultura de um determinado local conquistou a música, a dança, a performance, a arquitetura, o domínio também estético da tecnologia e, sobretudo, a poesia. Sempre que o cinema busca suas fontes nos palcos costuma ter dificuldade em expressar todos esses elementos. São linguagens diferentes, ainda que ambas sejam bastante visuais sem abrir mão de suas capacidades sensitivas. Mas quando consegue um bom resultado, o cinema consegue nos dar grandes atuações e lindas poesias e, claro, contar-nos uma boa história.

August Wilson é um dramaturgo dos Estados Unidos do qual os artistas e o movimento negro estão se esforçando para colocá-lo no rol dos maiores escritores do teatro mundial, com toda justiça. Não é à toa que ele é chamado por muitos como “o poeta do teatro da América negra”. Suas obras nos convidam para um mergulho cultural sobre como é ser negro nos Estados Unidos, refletindo sobre a condição humana diante de temas sensíveis como as relações raciais, identidade cultural, segregações sociais e sentimentos conflitantes entre o sonhar e o viver.

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Do esforço em firmar August Wilson como um dos maiores dramaturgos da humanidade, “A Voz Suprema do Blues” (“Ma Rainey’s Black Bottom”, Netflix, 2020) é o segundo filme com a mão de Denzel Washington – o primeiro foi o aclamado “Um Limite entre Nós” (“Fences”,  2017), que rendeu quatro indicações ao Oscar e o prêmio de melhor atriz para Viola Davis. Com direção de George C. Wolfe e roteiro de Ruben Santiago-Hudson, “A Voz Suprema do Blues” tem, no centro da história, um episódio da vida da cantora Ma Rainey (Viola Davis), considerada a Mãe do Blues, quando ela iria gravar um de seus discos em plena Chicago dos anos 1920. Paralelamente, vamos conhecendo também a escalada de ressentimentos de sua banda e também dos produtores do disco.

O filme acerta em cheio em não tentar esconder que se trata de uma adaptação de uma peça de teatro para os cinemas. Os diálogos são típicos dos palcos, onde o valor de cada frase tem muito mais valor do que qualquer reprodução de uma conversa. Óbvio que ninguém fala desse jeito, foi feito para destoar propositalmente. Mas essas frases que carregam em si diversas profundidades e sentimentos precisam encontrar atores e atrizes capazes de emprestar suas vozes e seus corpos em uma atuação à altura da importância de cada palavra. Temos, então, uma atuação típica dos teatros, porém pouco usual para o cinema. Tudo é grande, tudo é performático, tudo é voltado para a arte do ator.

Como se trata de uma peça de teatro, cada personagem tem seu destaque, tem o seu momento. Há equilíbrio entre tempo de tela e importância das personagens. Todos estão maravilhosos, mas Chadwick Boseman está com uma atuação sublime. Ele interpreta o sonhador e insolente trompetista Levee, que acha estar muito perto de ter seu valor reconhecido e da oportunidade de gravar seu próprio disco, com suas próprias músicas e sua própria banda. O personagem está à frente de seu tempo, soube identificar que a cena musical em breve traria transformações no Blues. Que brancos e imigrantes logo descobririam o gênero musical, mas procurando um ritmo mais acelerado, mais alegre. Levee sabia que a identidade musical do Blues precisaria agradar a identidade sonora desse público.

Leeve, porém, precisa enfrentar a descrença dos demais membros da banda (interpretados por Colman Domingo, Glynn Turman e Michael Potts), além do enorme ego da cantora Ma Rainey. Os integrantes da banda sabem que os sonhos teimam a se concretizar, sobretudo se você é um negro nos Estados Unidos. E Ma Rainey justifica o quanto ela é insuportável de propósito, pois só assim as pessoas continuariam valorizando tudo o que ele representa para a cultura negra e a imensa trajetória que ela teve que fazer para chegar aonde ela chegou. Ela sabe que aquilo tudo é passageiro e que os brancos estão interessados somente em sua voz, nada interessados, portanto, em tudo o que o blues representa, ou o que a própria cantora representa. Por isso, não faz nenhuma concessão. Ela é uma diva e precisa ser tratada como tal, mesmo que isso exija pesadas roupas sob um calor de matar em Chicago.

A força do filme está na interpretação. Viola Davis nos apresenta uma mulher poderosa, que sabe o que quer e como impor suas vontades seja para quem quer que seja. Sua conduta insuportável, seu corpo repugnantemente sempre suado, vai criando uma série de antipatias no público, entretanto, nos faz refletir sobre o porquê nos incomodamos tanto, afinal, ceder seria abrir mão de muitas coisas e ela não seria o que foi se simplesmente aceitasse o que os outros querem impor a uma mulher e negra. E quando ela provoca reflexão, sai de baixo: – “os brancos não entendem o blues, sabem o que é, mas não conseguem entender de onde vem”.

Boseman também nos proporciona uma grande interpretação, a melhor de sua carreira (infelizmente interrompida pelo câncer). Seu sotaque, seus maneirismos, seus gestos, é um ator entregando tudo de si a cada fala. E quando achamos que ele não poderia entregar mais, há pelo menos três cenas em que ele mostra que é capaz de superar até a si mesmo (quando conta a tragédia de seus pais, quando explode em ressentimento e desafia Deus, e o ato final). Muito provavelmente o Oscar de melhor ator será também uma homenagem póstuma esse ano.

Como nem tudo são flores, o filme tem severos problemas. Algumas escolhas de plano foram pavorosas e quase arruinaram a obra. Câmera em close quando deveria mostrar a interação entre atores, plano-detalhe que tiraram completamente a ação do foco, sem falar de cortes apressados e bastante preguiçosos minaram diversos momentos em que a cena pedia profundidade. O filme também tem momentos em que perde o ritmo e custa passar o tempo. No teatro é comum diversos diálogos aparentemente sem sentido anteciparem o auge de uma cena, no cinema, todavia, caso não seja bem executado pode virar uma sessão de tortura. Diversas vezes somos tentados a desistir do filme por causa desses momentos, infelizmente.

A dramaturgia aborda questões que têm potencial para serem poderosas, tais como as relações intra-raciais e a sua tensão entre os negros do norte e do sul, as maneiras como os artistas negros devem navegar nas estruturas de poder dos brancos que procuram apenas o lucro e não o valor artístico de seu trabalho. Mas essas questões são apenas tocadas muito rapidamente, enquanto outras irrelevantes acabaram hipervalorizadas. Considere, por exemplo, o momento em que Levee, ao seduzir Dussie Mae (Taylor Paige, numa atuação pra lá de caricata), pergunta: “Posso apresentar meu galo vermelho à sua galinha marrom?” Uma frase que merece um revirar de olhos recebida como se fosse o cúmulo da sedução.

VEREDITO: “A Voz Suprema do Blues” é teatro puro na tela. Poucos cenários, diálogos muito bem interpretados, frases colocadas com exatidão na construção de cada cena. Temos em quase todos os personagens grandes performances de seus atores, mas Boseman e Davis estão inegavelmente sublimes. É uma pena que as escolhas técnicas quase arruinaram o filme. NOTA: 8,5.

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