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Sweet Tooth: uma maravilhosa fábula sobre o fim do mundo

O fim do mundo é agourento e mórbido, mas crianças sempre lhe dão alguma doçura.

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Providência

A premissa da série dialoga em muito com nossa realidade, mas se engana quem acha que a sua suavidade deixa a pandemia mais palatável por oferecer ternura. A fábula se desenvolve em um mundo afetado pelo “Flagelo”, uma pandemia causada pelo vírus H5G9. A doença aniquilou mais de oitenta por cento da população mundial, mergulhando a humanidade no caos. Um mundo em que a produção industrial se desfez quase por completo, cultura e entretenimento se tornaram lembranças, internet e tecnologias automotivas sucatearam-se quase que totalmente. Além de ser uma sociedade sem leis e regras, a doença causou mutações genéticas em todas as gestações, fazendo com que toda criança nasça híbrida, ou seja, com traços animalescos – em alguns casos, inclusive, na proporção mais bicho do que gente.

Dentre os Híbridos, como passaram a ser chamadas tais crianças, conhecemos Gus (Christian Convery, que tem uma atuação muito bem dirigida e nos encanta em cada cena com sua ternura e inocência). Gus, também chamado de “Sweet Tooth, ou seja, bico doce”  de tão apaixonado por doces, é parte menino, parte cervo, com chifres e olhos também noturnos que brilham no escuro. Seu pai, Richard ou Paba, como é chamado por Gus (Will Forte, também com uma excelente atuação), constrói um isolamento em meio a floresta para viver com seu filho longe dos perigos do mundo. Acompanhamos com detalhes o desenvolvimento de Gus por dez anos, vemos seu pai ensinando-lhe valores, sobrevivência, além de dar carinho e ternura com livros desenhados à mão e brinquedos de pelúcia costurados com meias e demais materiais disponíveis.

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A história finalmente começa a se transformar em aventura quando aquela idílica e bucólica vida de isolamento é interrompida pela invasão dos “Últimos Homens”. Estes são uma espécie de exército de extermínio tanto de pessoas infectadas que possam transmitir novas variantes do vírus mortal quanto das crianças híbridas – pois ninguém sabe qual é a relação da doença com aquelas crianças. Richard morre e Gus só não é também morto devido a intervenção de Jep, o Grandão (Nonzo Anozie, também fascinante em sua atuação). Ao salvar Gus, acaba involuntariamente se tornando também seu guardião, dando início à jornada.

À primeira vista, parece que veremos Bambi numa aventura de O Senhor dos Anéis. Porém, não se trata de uma jornada para encontrar ou se livrar de algum artefato que poderá salvar o mundo. O mundo já está perdido e a jornada é a singela busca de uma criança por sua mãe. Paralelamente, vemos outros arcos narrativos se formando e se preparando para encontrar em algum momento o arco principal. Em um desses arcos, temos Doutor Singh (Adeel Akhtar, que por enquanto tem uma atuação convincente, mas um pouco aquém da importância do personagem), vem mantendo clandestinamente em segredo a doença de sua esposa Rani (Aliza Vellani, outra atuação pouco desenvolvida, mas suficiente). Ele aplica nela soros experimentais que amenizam os sintomas e prolongam a vida, porém sua composição é moralmente duvidosa devido ao sacrifício de crianças híbridas que a fórmula exige. Quando a médica que produz tal soro adoece de câncer, Singh se vê em dilema: continuar as pesquisas nada éticas ou salvar sua esposa da morte iminente.

Outro arco importante é o dos fanáticos, um grupo adolescente que tem uma devoção quase que religiosa pelos híbridos. Eles são liderados por Ursa (Stefania Owen, que está belíssima e com uma atuação magnífica). Ela irá se unir à jornada de Gus e Grandão após um motim de seu bando que vive numa interessante aldeia tecnológica dentro de um parque de diversões. Em outro arco, temos Aimee (Dania Ramirez, que consegue entregar a tensão que tanto falta para Akhtar e faz uma combatente mais interessante que o próprio Grandão). Ela, que era uma psicóloga bastante avessa às pessoas antes da pandemia, encontra alento em seu isolamento em um zoológico. Ao receber uma criança híbrida, que irá criá-la como filha, decide transformar suas instalações em uma espécie de refúgio para outras crianças híbridas. Por fim, temos o mal encarnado na figura do general Abbot (Neil Sandilands, numa atuação bem caricata e por vezes canastrona), líder do exército dos “Últimos Homens”.

Baseada numa história em quadrinhos de Jeff Lemire, a série conta com a produção de Robert Downey Jr, o Homem de Ferro do universo cinematográfico da Marvel. Entretanto, a primeira temporada inteiramente disponível pela Netflix não é tão sombria e complicada quanto o material de origem. O que é um belo acerto tratar com leveza um tema tão presente em nossa realidade de um mundo imerso numa imensa pandemia. Acerto esse que pode incomodar os leitores mais fundamentalistas das HQs de Lemire. Toda a violência gráfica é deixada de lado, indo na contramão das nauseantes produções mais fiéis das histórias em quadrinhos mais recentes como “The Boys” e “Invencível” (ambos pela Amazon Prime). Em vez de vísceras expostas, os horrores de um período apocalíptico são pano de fundo para uma fábula leve e aventureira que acompanha os inocentes olhares das crianças sobre aquele decaído e perigoso mundo. É, portanto, necessário deixar de lado o material de origem para apreciar as belas paisagens e a dissonante paleta de cores que teimam em se mostrar inofensivas em meio a tensão de guerra.

As alterações sobre o material original de Lemire servem à fábula muito bem, sem efeitos colaterais narrativos ou aquelas clássicas cafonices que invadem qualquer produção envolvendo crianças e que sempre nivela tudo como se fosse um conto de natal. Em vez disso, temos riqueza estética em meio a uma história bem contada. O contraste é sempre presente como luz e sombras. A tensão está sempre presente ao mesmo tempo que a ternura, envolvendo as personagens com leveza mesmo diante de situações bastante difíceis e trágicas. E a trilha sonora merece atenção especial, pois suas letras refletem bem o espírito narrativo e evocam sentimentos que complementam o que estamos vendo.

O ritmo da série não é ágil, começando bem devagar se comparado com outras produções baseadas em quadrinhos. Melhor assim, pois vemos uma narração que está mais preocupada com a inocência de Gus e na sua capacidade de confiar em alguém mesmo em meio a uma sociedade em que não se pode confiar em ninguém. Os outros elementos como o mistério que ronda a relação entre híbridos e a doença, as explicações de como o mundo chegou naquela situação, ou mesmo os sintomas da doença, enfim, são informações que a série vai nos dando aos poucos, mas como consequência e não como foco.

É de se destacar também o excelente trabalho de dublagem da versão brasileira conduzida pela Som de Vera Cruz. O trabalho de tradução está incrível, conseguiu resolver verdadeiros problemas que poderiam afetar diretamente a narração se não tivesse a sensibilidade de enfrentar uma por uma com a mesma leveza que possui a série. Além disso, as vozes que dublam cada personagem tem peso dramático além do sincronismo. Quem assistir a série dublada é capaz de se sensibilizar ainda mais com a jornada de Gus e Grandão.

VEREDITO: a série vai na contramão de quase tudo o que vimos em matéria de adaptação de quadrinhos mais adultos que vemos atualmente. Em vez de um futuro apocalíptico cibernético e visceral, vemos doçura e muita natureza vibrante. E não é apenas de escolhas estéticas que a obra nos fascina, mas com seu personagem principal, um garoto doce, confiante, inocente, que não conseguimos parar de torcer por ele. Trazendo um pouco de alívio e ternura para nossos dias de isolamento social e medo. NOTA: 10,0

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