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O Som do Silêncio: todo o Mundo é composto de mudanças, adquirindo novas qualidades

A surdez é uma personagem nesse filme existencialista e forte candidato ao Oscar

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em

Velho Oeste

Dos filmes produzidos pelos serviços de streaming que receberam indicação ao Oscar, O Som do Silêncio (Sound of Metal, Amazon Prime, 2020) é o primeiro que lamentei profundamente por não assisti-lo numa sala de cinema. Merecia a grande tela, merecia o melhor equipamento de som. A violência da primeira cena, com sua música ruidosa e estridente, de letra fortíssima, logo irá fazer contraste com a surdez repentina diante de um dia comum sem maiores incidentes. Ela, a surdez, é personagem que vem de repente – o som sai do ambiente e as vozes ficam abafadas. Não há um grande evento, nenhuma catástrofe que justifique aquela deficiência, ou seja, na contramão das fórmulas tão batidas do cinema atual. Se repararmos bem, não há sequer uma grande história sendo contada por meio de diálogos elaborados e cenas explicativas, tampouco vilões ou heróis. Em vez disso, é um filme para sentir para além da visão, audição e intelecto. Um filme-arte, para o qual você deve buscar outros sentidos para melhor apreciá-lo.

É difícil resumir sobre do que se trata o filme. Na descrição da própria Amazon Prime, trata-se da história de Ruben (Riz Ahmed), um baterista que de repente perde a audição. Porém, tal descrição é paupérrima, passando longe do que o filme realmente é. A surdez é uma personagem, assim como a comunidade terapêutica onde Ruben aprenderá a ser surdo. A própria música é personagem, uma espécie de punk-metal-experimental-performática que ele e sua namorada Lou (Olivia Cooke) apresentam nos espaços alternativos dos Estados Unidos.

Funerária Alemão

Então, do que se trata o filme? Não é sobre a luta de um deficiente auditivo,tampouco seu sofrimento ou nobreza. Não temos aqui as famosas cinco fases do luto (negação, fúria, barganha, depressão e aceitação) terminando com uma inspiradora catarse sobre elevação e resiliência. Sequer o filme aborda qualquer drama ou condescendência sobre a comunidade terapêutica para surdos que apenas aparentemente se assemelha a uma  comunidade para drogaditos. O filme vai escapando de todas as fórmulas e nos apresenta um retrato sobre o desenvolvimento interior, comovente, mas duro como diamante. É um filme sobre mudanças em nossas vidas e nossa imensa jornada para se adaptar às novas realidades. Como já diria Camões: “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (…) todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.”

Ao longo da obra, vamos deixando para trás qualquer justificação que o filme nos oferece. O passado é doloroso, mas em nada contribui para explicar o presente, muito menos para superar os novos obstáculos. O alto e barulhento som talvez tenha sido o motivo da surdez de Ruben, mas também pode ser meramente um problema auto-imune. Pouco importa, o fato é que há uma perda auditiva do qual jamais se recuperará. Os ressentimentos familiares de Lou podem até explicar seu comportamento auto-destrutivo, mas jamais os justificam e ela encontra uma vida consideravelmente melhor a cada passo que dá. Até mesmo a questão da drogadição não é qualquer justificativa, afinal, há quatro anos que nossos personagens estão livres das drogas. As coisas simplesmente acontecem, atravessam nosso caminho. Acidentes, doenças, problemas, vícios, tragédias, tudo pode acontecer e nos resta apenas o caminho da adaptação. Não dá para consertar, mas dá para aceitar ajuda para termos pelo menos nosso psicológico fortalecido para enfrentar a nova realidade que se impõe a cada obstáculo.

O contraste é presente ao longo de toda a história. Som e silêncio, a tentativa de uma vida saudável em ambientes insalubres, a paz e a alegria da comunidade terapêutica em meio a tanta dor de seus pacientes. Por diversas vezes nós, como público, ficamos igual a Ruben, uma criança em meio a adultos que mal consegue se expressar ou entender o que as pessoas tentam comunicar. Mas também vamos testemunhando o desenvolvimento do personagem sem que haja nenhum ponto de virada. Tudo é muito sutil e aos poucos a vida antiga vai sendo deixada para trás. Toda ela.

A atuação de Riz Ahmed como Ruben é excepcional. Seus olhos grandes como o de uma coruja transmitem muito mais do que palavras podem transmitir. Também é uma atuação muito precisa, tudo tem seu momento e seu lugar. Os momentos de raiva, de dúvida, de medo, de dor, de decepção, enfim, o ator dá lugar a cada sentimento na hora certa, na intensidade correta, sem exageros ou faltas. Também vemos o personagem crescer, desenvolver-se. O Ruben do começo do filme é completamente diferente do Ruben que vemos no final.

Os demais personagens também são muito bem interpretados. Olivia Cooke, como Lou, é enigmática, quase nunca fala o que está sentindo. Mas conseguimos sentir sua angústia, seus momentos de dúvida. A última cena entre Lou e Ruben nos dá a impressão de que conhecemos tão bem aqueles personagens que, mesmo eles não verbalizando o que está acontecendo, entendemos exatamente tudo o que está se passando na cabeça deles. A música cantada ao piano um pouco antes reflete o sentimento de Lou mais do que ela conseguiu verbalizar em todo o filme. Paul Raci, como Joe, o líder da comunidade terapêutica, também é primoroso em sua atuação. Temos que observar suas micro-expressões para captar seus sentimentos, já que ele quase não se comunica por fala. Além de diversos atores que são realmente deficientes auditivos e que participam do filme, diversos deles são crianças e todos estão muito bem. Não podemos esquecer de Mathieu Amalric, que interpreta o pai de Lou, que faz uma pequena participação, mas que consegue nos cativar e mostrar que não é necessário ter qualquer personagem tóxico para se ter um bom filme.

Como a surdez é também uma personagem em “O Som do Silêncio”, é necessário engrandecer o design de som de Nicolas Becker. A sutileza do filme não teria seu resultado se não fosse por ele. Temos um som sem ostentação que nos leva para dentro e para fora da cabeça de Ruben ao longo do filme para experimentar o mundo tal como o personagem o faz. Vemos que a tecnologia ajuda, mas não resolve. Testemunhamos a confusão e o pânico num mundo de perda de audição e distorção de ruídos.

O Som do Silêncio é o primeiro filme de Darius Marder e será um grande cartão de visitas desse promissor diretor e roteirista. Conseguiu fazer cinema e também falar de surdez, ambos sem estereótipos e preconceitos.

VEREDITO: O Som do Silêncio pode não ser um filme otimista, mas seu existencialismo nos conforta. Todos temos problemas, alguns insolúveis, então, sabendo disso, resta-nos somente nos adaptar e continuar nossa jornada. Tudo nesse filme é sutil, mesmo quando o ruído e o barulho são tão perturbadores quanto o silêncio absoluto. NOTA: 10,0

Sicredi
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