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MANK (Netflix, 2020): um filme bastante pretensioso, mas também com o maior número de indicações ao Oscar 2021

Um filme que nos brinda com importantes reflexões e personagens históricos do início da indústria cinematográfica, mas que soa bastante pretensioso em seu conjunto

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Gramado Presentes

Houve um tempo em que o cinema não era levado à sério, pois era considerado uma arte menor nos Estados Unidos da década de 1930. Era o começo da indústria cinematográfica. Hollywood atraía para o deserto alguns dos poucos gênios disponíveis e um imenso batalhão de idiotas como uma nova febre do ouro. Muitos desses escritores e jornalistas de renome abriam mão de assinar seus roteiros para que evitassem o desprestígio dos intelectuais da época. Este é basicamente o drama que permeia todo o filme Mank, de David Fincher, mas que só se revela no final e em meio a um universo de referências e personalidades históricas que ajudaram a construir Hollywood.

Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), ou Mank para os íntimos, é um desses escritores que só foi para a costa oeste dos EUA para ganhar dinheiro mesmo subestimando a sétima arte. Ele foi creditado como co-roteirista do grande clássico do cinema “Cidadão Kane”, de 1941, de Orson Welles. O filme nos conta seu processo criativo, mostrando seu auge intelectual em meio ao seu declínio quanto ao seu prestígio e também seu problema com o álcool. Portanto, duas paralelas que se encontrarão no infinito do último capítulo: a história de sua carreira em Hollywood e a criação de sua maior obra.

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Para quem espera ver os bastidores de Cidadão Kane, o filme pode decepcionar pois quase não fala nada, exceto por uma jocosa explicação ao misterioso “Rosebud”. Mostra, entretanto, a indústria do cinema se estabelecendo. Vemos a sétima arte cada vez menos artesanal e se transformando em produção de escala industrial. É curioso observar a busca por qualquer coisa que inspire novos filmes, inclusive peças de teatro que foram um fracasso nos palcos, como diz um dos personagens: – “uma peça de teatro só será ruim se não funcionar no cinema”. Por isso, muitos jornalistas, cronistas e críticos de arte migraram para a costa oeste. “Basta saber juntar três palavras numa frase de efeito para ser considerado um roteirista de renome para a indústria”, disse Mank.

Agora, por outro lado, se o filme fala pouco de Cidadão Kane, mostra muito diversos personagens que fizeram a história de Hollywood sem grandes explicações sobre suas contribuições para o que conhecemos hoje sobre a indústria cinematográfica, tampouco sobre sua era de ouro. Apresenta o “menino prodígio”, Irving Thalberg (Ferdinand Kingsley, numa atuação suficiente, sem maiores brilhos), sem qualquer menção de que ele praticamente revolucionou a forma de se fazer negócios e pós-produzir o cinema. Quase nada fala sobre Orson Welles (Tom Burke, que tem presença, apesar de poucas cenas). Cita a fusão das três produtoras que formaram a MGM, mas só dá alguma atenção ao mesquinho e sovina Louis B. Mayer (Arliss Howard, que deu excelente interpretação ao seu personagem). E até nos apresenta o todo poderoso William Hearst (Charles Dance, sendo Charles Dance), magnata da imprensa, capaz de indicar gabinetes presidenciais como um diretor de cinema seleciona seu elenco, praticamente o criador das fake news estadunidenses para beneficiar políticos de estimação e, claro, a principal fonte de inspiração de Mank para a criação do Cidadão Kane. Não podemos nos esquecer da musa inspiradora de Mank, a esposa de Hearst, Marion Davies (Amanda Seyfried, talvez a única personagem mais humanizada de todo o filme).

O filme nos dá alguns personagens secundários sem maiores desenvolvimentos como a pobre Sara (Tuppence Middleton), esposa de Mank, e a britânica Rita Alexander (Lily Collins), uma espécie de secretária que iria taquigrafar e datilografar para Mank. Ambas as atrizes dão carga emocional com precisão, mas suas personagens não lhe dão muito com o que trabalhar. É um filme todo voltado para Gary Oldman que está muito bem em seus diversos papéis dentro de um mesmo personagem. E por falar em Gary Oldman, é impressionante ver um ator de mais de 60 anos de idade interpretando um personagem de pouco mais de quarenta anos (o filme diz que tem isso, mas na verdade, Mank teria uns 30 quando os eventos nos flashback nos são narrados).

O filme soa por demais pretensioso. O preto e branco perolado e as marcas de troca de rolo são meros preciosismos, já que em nada contribuem para a narrativa (A Lista de Schindler é um bom exemplo de como um filme de nossa época pode fazer um preto e branco ser relevante). Tampouco as decisões de câmera que dialogam com alguns enquadramentos de Cidadão Kane possuem alguma relevância além da boa estética. Sem dúvida é um filme bem produzido, de fotografia impecável, boa escolha de elementos técnicos e artísticos. Mas acaba sendo uma espécie de fan service para cinéfilos da era de ouro e da história de Hollywood, podendo se tornar cansativo e desinteressante para quem não é tão aficionado assim pelas entranhas do desenvolvimento do cinema dos Estados Unidos.

O mais incômodo é que o filme se baseia naquelas fofocas que servem mais ao revisionismo histórico do que para a importância de uma obra. Em outras palavras, o roteiro, escrito pelo pai de David Fincher, falecido em 2003, tem como base a polêmica levantada pela escritora Pauline Kael acerca da verdadeira autoria de Welles de Cidadão Kane. Obviamente que Cidadão Kane foi escrito por Mank, mas toda a produção, edição, direção e pós-produção foi obra de Welles. A ousadia do diretor foi tão grande que ele entregou um filme revolucionário, mas que praticamente acabou com a sua carreira. Isso o filme sequer pondera, apresentando apenas um diretor ególatra que não quer dividir créditos.

O filme nos brinda com reflexões importantes, mesmo que apenas de maneira declaratória como a origem das fake news pelas mídias audiovisuais, obviamente um elemento que busca dialogar com a atualidade. É curioso ver a indústria cinematográfica armando, com muito sucesso, contra o candidato socialista ao governo da Califórnia, tal qual Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler – talvez o verdadeiro pai das Fake News. Afinal, “se o cinema consegue convencer alguém que existe um macaco de dez andares de altura e que ele se apaixona por uma mulher virgem de 40 anos de idade”, como diz o próprio Mank, certamente acreditará que o melhor candidato é o Republicano – “e nem é a coisa mais vergonhosa que já vi por aqui”. 

Também há momentos de grande sagacidade como o rápido debate sobre a decisão da Paramount achar que seus filmes deveriam ser mais voltados para cinejornalismo e não tanto para dramatizações. Nesse momento, rapidamente há o reconhecimento do socialista Eisenstein (O Encouraçado Potenkin, URSS, 1925) e da nazista Riefenstahl (O Triunfo da Vontade, Alemanha, 1934) como principais nomes dessa forma de fazer cinema e como era incômodo notar que os Estados Unidos ainda não havia alcançado maestria nessa forma de produzir cinema. Mas todos esses debates são para olhares mais cinéfilos e mesmo assim nada profundos. O filme simplesmente lança-os no ar, por vezes através de diálogos brilhantes, mas quase sempre sem nenhum posicionamento ou relevância.

VEREDITO: Mank é um filme pretensioso, olha mais para fora do que para dentro e acaba entregando um roteiro fraco sobre um dos maiores roteiristas da história da Era de Ouro de Hollywood. Muito bem filmado, sem dúvida, sendo justo ser o filme que mais recebeu indicações para o Oscar. Nos brinda com boas reflexões e personagens importantes da história de Hollywood, mas podendo ser extremamente cansativo para olhares mais neófitos em relação ao cinema. NOTA: 7,0.

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