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Iniciativa de empreendedora negra acolhe e empodera pessoas com cabelos crespos: ‘Liberdade é quando a gente tem opção’

Thais Ramos, de Curitiba, decidiu criar uma empresa ao planejar uma transição capilar e perceber que não havia opções de apliques e alongamentos de cabelos naturais para pessoas negras.

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A empreendedora mudou de ramo e criou uma empresa para acolher histórias e oferecer os produtos para pessoas que buscavam representatividade capilar. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS
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“Tive meu cabelo alisado desde os seis anos. Não conhecia o meu cabelo, não tinha a menor ideia de como ele era. O que eu desejava era poder parar de alisar”, conta Thais Ramos, empreendedora de Curitiba sobre a própria história.

Ao decidir por encarar a transição capilar, após 20 anos de alisamentos e um cabelo enfraquecido pelos efeitos dos produtos químicos, ela afirma que se viu diante de uma questão de mercado: não havia empresa no país que oferecesse alongamentos de cabelo natural crespo.

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A descoberta trouxe indignação mas, principalmente, motivou Thais a buscar uma solução.

Ela, que até então tinha uma agência de turismo administrada com o marido, mudou de ramo e criou uma empresa para acolher as histórias e oferecer os produtos para atender pessoas que, assim como ela, buscavam representatividade capilar.

“Foi uma ideia que surgiu a partir de uma dor minha. Hoje, o meu trabalho é reconstruir a imagem do cabelo. Se eu desconstruo a imagem de que esse cabelo é sujo, ruim, o que fica no lugar? A gente trabalha com a reconstrução: esse cabelo é limpo, serve para a senhora da limpeza e para a juíza, serve para quem tem o cabelo, é para uma mulher normal”, disse.

Thais conta que, em um primeiro momento, abriu a empresa em uma plataforma online, mas percebeu a demanda aumentar radicalmente logo nas primeiras semanas.

O trabalho aumentou, a iniciativa ganhou um ponto fixo, e mais 15 pessoas foram contratadas para os atendimentos: todas elas mulheres negras.

Thais Ramos é empreendedora e por meio do trabalho busca ajudar homens e mulheres negros a se identificarem, se enxergarem, com o cabelo natural. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS
Thais Ramos é empreendedora e por meio do trabalho busca ajudar homens e mulheres negros a se identificarem, se enxergarem, com o cabelo natural. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS

Segundo a empreendedora, o serviço vai além da venda dos apliques e alongamentos. A equipe acolhe e busca ajudar homens e mulheres negros a se identificarem, se enxergarem, com o cabelo natural.

“E isso ocorre não porque ela não pode alisar, ela pode fazer o que quiser. Quando ela se reconcilia com o cabelo, ela se conecta com ela em lugares que nem sabia que existiam, porque no final das contas quando a nossa auto estima está no lugar certo, o céu é o limite pra gente. Esse é o sentido real de liberdade, quando a gente tem opção”, afirmou.

A equipe da empresa de Thais é formada por mulheres negras. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS
A equipe da empresa de Thais é formada por mulheres negras. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS

‘Se reconhecer negro’

A história vivida por Thais tem pontos semelhantes aos que viveram grande parte dos clientes que a procuram.

Para a enfermeira e terapeuta integrativa Nancy Aparecida Costa, de 41 anos, a infância também foi um período de alisamentos agressivos e, segundo ela, de tentativas de se “enquadrar” em um padrão que não a representava.

“Pessoas negras costumam dizer que a gente nasce duas vezes no Brasil. Uma vez é quando a gente nasce da nossa progenitora e a segunda vez é quando a gente se reconhece negro. E eu nasci há menos de 10 anos como uma mulher negra”, comentou.

Nancy Aparecida Costa conta que passou por um processo de busca até encontrar o empoderamento com o cabelo que a representa — Foto: Nancy Costa/Arquivo pessoal
Nancy Aparecida Costa conta que passou por um processo de busca até encontrar o empoderamento com o cabelo que a representa — Foto: Nancy Costa/Arquivo pessoal

Nancy conta que teve os cabelos alisados desde os dois anos e que se lembra de que, na época, ficava sentada em cima de listas telefônicas para que a cabeleireira pudesse alcançar seus cabelos para fazer o alisamento.

Ela relata lembrar de episódios de racismo sofridos desde a adolescência e que muitas vezes a busca por se reconhecer acabava sendo anulada.

Foi uma amiga, também negra e cliente, que indicou a empresa de Thais para Nancy, que afirma ter tomado a transformação capilar como ferramenta para esse reconhecimento.

“Uma vez eu comentei com uma terapeuta que se eu passasse por mim na rua, andando, eu não me reconheceria. Se eu parasse em uma loja e visse meu reflexo no espelho, eu não sabia que aquela ali era a Nancy. Hoje, eu sei até de costas que aquela sou eu. Você entende o que eu quero dizer? Eu não sabia quem eu era. Era um acúmulo de considerações de outras pessoas”, afirmou.

Nancy conta que teve os cabelos alisados desde os dois anos e que, atualmente, se sente representada — Foto: Nancy Costa/Arquivo pessoal
Nancy conta que teve os cabelos alisados desde os dois anos e que, atualmente, se sente representada — Foto: Nancy Costa/Arquivo pessoal

O encontro com a própria identidade também mudou a vida do gerente de Recursos Humanos e Cultura Rodrigo Costa, de 33 anos. Ele também passou por um processo com a empresa de Thais até encontrar o cabelo que melhor o representava.

Rodrigo conta que sempre teve que conviver com uma pressão para somente usar o cabelo curtinho, o que anulava a identidade que ele reconhecia para si mesmo, como homem negro e homossexual.

Ele conta que um dia, mesmo antes de conhecer a empresa, procurou lugares para fazer tranças no cabelo, e a experiência foi marcante ao se ver um pouco mais próximo do que buscava para o representar visualmente.

“Eu sai do salão com as tranças de um lado para o outro, felizão, aceito por mim. Me olhei no espelho e falei ‘caraca, sou eu também! Não é uma pessoa volátil, buscando apenas aceitação’. Porque meu cabelo reflete sobre quem sou eu. Porque as mulheres podem pintar os cabelos de todas as cores, 70 mil facetas, e porque o homem não pode fazer isso também?”, disse.

Rodrigo Costa, de 33 anos, conta sobre a ligação da identidade de cada um com os cabelos que usa — Foto: Rodrigo Costa/Arquivo pessoal
Rodrigo Costa, de 33 anos, conta sobre a ligação da identidade de cada um com os cabelos que usa — Foto: Rodrigo Costa/Arquivo pessoal

Segundo Rodrigo, muitas pessoas passam por processos de sofrimento e pressão social até conseguirem a liberdade de usar o corte e o cabelo que quiserem. É um processo de entender quem se é, para poder representar isso no cabelo, de acordo com ele.

“O nosso cabelo é o que vai estar ali na nossa foto 3×4. Quem é que você quer mostrar na foto 3×4, que é a foto que vai na sua identidade? Cada um tem uma identidade e a foto 3×4 a gente sabe que representa muito para muitas pessoas”, destacou.

Thais comentou que, com a trajetória da empresa e o atendimento a cada caso, já ouviu muitas histórias de sofrimento pelo preconceito e até mesmo anulação diante de uma cobrança por parte de outras pessoas.

Ela conta que já atendeu clientes que ouviram de maridos que não poderiam cortar o cabelo. Pessoas que perderam empregos, relacionamentos e se distanciaram da autoestima por não poderem assumir quem são.

Segundo ela, os apliques, alongamentos e produtos de tratamento capilar que a empresa oferece ajudam as pessoas a se identificarem, se enxergarem, com o cabelo natural.

“A jornada nunca foi fácil, mas sempre foi linda, porque em todas as vezes em que eu pensei em desistir eu pensei ‘você não abriu a empresa por você, mas foi pelos clientes’. Então, eu tenho que continuar. É sempre o que me dá muita força. É convencê-las de fato a se reconciliarem com os cabelos”, concluiu.

Representatividade importa

Poder se ver representado em um lugar de destaque, permite que o indivíduo perceba que também pode chegar ao objetivo que quiser.

Na televisão, as jornalistas Dulcineia Novaes e Marcela Souza, da RPC, comentam episódios que já viveram que mostram a importância da representatividade de pessoas negras nos meios de comunicação. 

Em 2019, assim como aconteceu com a também jornalista Maju Coutinho, então apresentadora do Jornal Hoje, Marcela Souza recebeu um vídeo de uma telespectadora que comentava sobre uma menina negra que se inspirava nela.

As duas se encontraram e se emocionaram, em Paranavaí, no noroeste do estado. A menina, ao abraçar Marcela, contou o sonho de também se tornar jornalista e sobre o quanto a presença da apresentadora a fazia acreditar no objetivo.

Encontro entre Marcela e a telespectadora foi repleto de emoção — Foto: Reprodução/RPC
Encontro entre Marcela e a telespectadora foi repleto de emoção — Foto: Reprodução/RPC

Marcela comentou que, para ela, Dulcineia Novaes sempre foi inspiração.

“Quando eu era criança eu sempre tive a vontade de ser repórter. Sorte que tinha aquelas que me seguravam, que no meu pensamento me diziam ‘um dia você pode estar aqui ainda também’. Hoje, eu trabalho com uma dessas mulheres que eu cresci assistindo. Sou fã dela. A gente pode ser a realização do próprio sonho”, disse.

Dulcineia destacou que antes eram poucos representantes, mas que atualmente o jornalismo de televisão tem tido uma parcela significativa e crescente de jornalistas negros e que o cabelo crespo representa muito no vídeo.

“Nós estamos aqui, dia a dia, tentando conquistar o nosso espaço, fazer o melhor possível. O nosso cabelo crespo traz um pouco da nossa representatividade. Nós podemos sim dizer que temos capacidade, temos condições. Sim, nós podemos”, concluiu.

A jornalista comentou que no período de isolamento por conta da pandemia da Covid-19 decidiu resgatar e valorizar os cabelos crespos nas gravações. “Estou muito feliz com isso”, afirmou.

Dulcineia Novaes, jornalista, destacou a importância da representatividade de pessoas negras nos meios de comunicação — Foto: Reprodução
Dulcineia Novaes, jornalista, destacou a importância da representatividade de pessoas negras nos meios de comunicação — Foto: Reprodução

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Thais mudou de ramo e conta com o marido para a administração da empresa. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS
Thais mudou de ramo e conta com o marido para a administração da empresa. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS

Ideia para a mudança de ramo surgiu ao notar a ausência de representatividade para apliques de cabelos crespos. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS
Thais conta que começou a alisar o cabelo quando ainda era criança. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS
Thais conta que começou a alisar o cabelo quando ainda era criança. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS
A empresa de Thais conta com 15 mulheres negras na equipe, que auxiliam os clientes a se redescobrirem a partir do cabelo.  — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS
A empresa de Thais conta com 15 mulheres negras na equipe, que auxiliam os clientes a se redescobrirem a partir do cabelo. — Foto: Giuliano Gomes/PR PRESS

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