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O polêmico plano dos EUA para combater racismo desativando estradas

Incluído no grande projeto de infraestrutura do presidente Joe Biden está um plano para derrubar estradas “racistas” que, segundo ele, prejudicam as comunidades minoritárias -mas nem todos que ele está tentando ajudar concordam.

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|Foto: Getty Images|
Imobiliária Maurício Vazquez

Uma fina camada de fuligem cobre a tinta amarelo-palha das casas de madeira que margeiam a Interestadual 81, uma rodovia no centro de Syracuse, no estado de Nova York, sustentada por vigas de aço enferrujadas e pilares de cimento sujos.

A estrada, de onde saem os escapes dos carros que sufocam os moradores do entorno e na qual o som dos pneus dos caminhões pode ser ouvido dia e noite, corta o bairro em dois.

Dr. Pedro Wild

Um conjunto habitacional — Pioneer Homes — fica a leste, na base de uma colina. A oeste, há mais moradias públicas junto com as casinhas amarelas, principalmente de propriedade de minorias, e alguns negócios.

Ativistas de direitos civis chamam esse trecho da interestadual de “rodovia racista” porque estradas como esta dividem bairros de minorias e poluem essas comunidades. Os planejadores urbanos querem demoli-lo — e, agora, o presidente Joe Biden também tem isso em vista.

Biden vem apoiando um imenso plano de infraestrutura de US$ 1 trilhão (R$ 5,2 trilhões) que, se aprovado, se tornaria o maior investimento em estradas, pontes e ruas dos Estados Unidos em décadas.

Um enorme empreendimento político, o pacote não apenas trataria de consertos em velhas linhas de energia e estradas esburacadas, substituiria encanamentos de água potável e ampliaria o acesso à banda larga, mas também visaria mitigar as mudanças climáticas e as desigualdades raciais.

O projeto inclui US$ 1 bilhão para “reconectar comunidades”, o que significa demolir rodovias urbanas que passam por bairros como o de Syracuse.

Mas se derrubar estradas ao longo das quais viveram gerações de americanos é um caminho para o progresso racial é uma questão em aberto — e há muitos críticos.

A Casa Branca argumentou que tais “megaestradas”, que existem em todos os Estados Unidos, causaram sofrimento e arruinaram comunidades, primeiro destruindo negócios de propriedade de negros e forçando as pessoas a deixarem suas casas quando foram construídas e, mais tarde, através do ruído e da poluição atmosférica gerados pelo tráfego.

“Há racismo fisicamente embutido em algumas de nossas rodovias”, disse Pete Buttigieg, o secretário de transportes dos Estados Unidos.

Os especialistas dizem que há alguma verdade nessa afirmação. Quando o sistema de rodovias dos Estados Unidos estava sendo construído nas décadas de 1950 a 1970, os planejadores urbanos muitas vezes os projetavam para cortar bairros onde “os valores das propriedades eram mais baixos, porque essas casas eram as mais baratas de comprar”, disse Mark Rose, professor de História da Flórida Atlantic University em Boca Raton e autor de um livro sobre rodovias interestaduais.

Frequentemente, essas casas eram de americanos negros e outras minorias. Embora ativistas de Syracuse a Los Angeles tenham lutado contra a construção dessas estradas, elas foram construídas e deixaram comunidades destruídas — bombardeadas com barulho e poluição, e divididas ao meio. Estabelecimentos comerciais foram destruídos e nunca mais voltaram.

Enquanto isso, as estradas permitiam que o tráfego fluísse dos centros das cidades para os subúrbios para os passageiros de classe média que podiam pagar por esse estilo de vida.

Isso deixou um legado sombrio. Estudos descobriram que morar perto de uma rodovia nos Estados Unidos está associado a uma maior probabilidade de sofrer ataques cardíacos e asma. Quase 40% dos residentes no bairro ao redor da New Orleans Claiborne Expressway vivem abaixo da linha da pobreza, em comparação com 25% para a cidade como um todo.

Uma rodovia construída através do outrora próspero bairro negro de Greenwood em Tulsa, Oklahoma, significa que apenas um único bloco de estabelecimentos comerciais existe hoje. No seu auge, antes da construção da Interestadual 75 na década de 1950, havia 40 mercearias e 35 blocos de lojas e residências.

“Como um filho do Bronx, costumava estar em três lugares”, lembrou Ritchie Torres, um congressista de South Bronx, por onde passa uma grande estrada conhecida, a Cross Bronx Expressway. “Estava em casa, na escola e na sala de emergência, porque era repetidamente hospitalizado por asma.”

A “epidemia de asma” no Bronx foi uma consequência da via expressa, que é “literal e metaforicamente uma estrutura de racismo”, argumentou.

Quando a Interestadual 81 estava sendo construída através de Syracuse em meados do século 20, empresas de propriedade de negros foram demolidas para dar lugar à rodovia. Mais de mil residentes tiveram que deixar suas casas, de acordo com uma associação histórica local.

Buttigieg visitou a cidade em junho e falou em demolir o trecho da zona central. Um bulevar seria construído em seu lugar e o tráfego seria desviado para outro lugar.

O projeto custaria cerca de US$ 2 bilhões e poderia receber fundos federais.

O investimento federal em obras públicas costuma ser canalizado para os governos estaduais e locais, aumentando seus orçamentos.

Os membros do Congresso retiram boa parte do dinheiro federal para investir em seus próprios estados. Em alguns casos, isso pode ajudá-los a ganhar a reeleição ou a conseguir a adesão de constituintes.

Para Biden, a ênfase na igualdade racial fez parte de sua campanha e o ajudou a vencer a eleição. Abordar isso no projeto de lei de infraestrutura “cumpre muitas promessas de campanha e de governo”, disse Jon Reinisch, um estrategista democrata de Nova York.

O governo trabalhou muito para vender o pacote, e sua amplitude faz parte de uma estratégia para “ampliar o apelo do projeto de lei”, disse Lawrence Levy, do Centro Nacional de Estudos Suburbanos da Universidade Hofstra, em Nova York.

“É um trabalho pesado”, disse Levy, exigindo que a Casa Branca “alcance o maior número possível de pessoas e as convença a ver [a infraestrutura] de uma forma que não haviam pensado antes”.

O projeto foi aprovado no Senado e segue para a Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil).

Mas poucas pessoas em Syracuse acreditam que ela alcançará o que o presidente está prometendo.

“Parece bom no papel”, resmungou o caminhoneiro Alex Londono, 39. Seria melhor consertar a rodovia e ajudar o comércio local, disse ele.

Derrubar a rodovia seria apenas “sinalizar a virtude” — mostrar os próprios princípios, sem melhorar as coisas, disse ele.

Joquin Paskel, 28, concorda que a rodovia é racista. Um empresário que aluga casas infláveis ​​para festas infantis, lamenta que a estrada isola seu bairro do restante da cidade. “Isso só cria divisão”, disse ele, comparando a estrada a uma linha vermelha que demarca uma espécie de segregação.

Demoli-la, portanto, pode ajudar, diz ele, mas “não acho necessariamente que acabará com o racismo”.

Enquanto isso, sua namorada, Debowrah Yisrael, de 20 anos, se pergunta: “Para onde iremos durante as obras?”

Gainnis Brown, de um ano, pedala seu triciclo laranja e preto por uma rua perto da rodovia — ela é a quinta geração de sua família a morar perto da estrada.

Apesar de seus aspectos indesejáveis, é um lar, diz a tia-bisavó de Gainnis, Kathy Gaston.

A irmã dela mora no quarteirão, e outros parentes também. No fundo de sua casa, ela tem um pessegueiro e um quintal exuberante. “Eu fiz todas as cercas vivas”, diz ela. “Veja como são bonitas.”

Gaston, de 61 anos, apoia o presidente — mas ela diz estar mais preocupada com os assuntos do dia-a-dia do que com as promessas de campanha. A poeira, soprada da rodovia, cobria a mobília.

“Uso estes lenços umedecidos de limpeza”, disse ela, passando o dedo sobre a mesa. “Fico andando pela casa, fazendo isso todos os dias.”

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