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14 anos depois, mães de crianças assassinadas por PM em Marechal, falam sobre a maternidade após uma perda trágica

Elas falam sobre a maternidade após a perda trágica

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FOTO: Reprodução/Redes sociais
Martin Luther – Enem

Quando falamos de maternidade a primeira coisa que nos vem à mente é a vida. Afinal, este é um evento único. Que delícia que é acompanhar uma gestação, vivenciar a expectativa de descobrir a cor dos olhos, da pele, do cabelo de um novo “serzinho”. Como é empolgante ver uma vida crescendo dentro de si ou de alguém que gostamos muito…

E a sensação indescritível que é ter um bebê nos braços, sentir o cheirinho de “nenê”, observar as caretas e manias que vão desenvolvendo… acompanhar os primeiros balbucios, ficar na expectativa de qual será a primeira palavra do bebê, quando vai aparecer o primeiro dente e toda essa infinidade de surpresas que uma nova vida oferece.

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A maternidade tem um lado tão bonito… de momentos felizes, emocionantes, cheios de afeto, aprendizado… Mas, infelizmente, quando olhamos para a realidade, muitas imagens doloridas estão estampadas em nossa frente. Quantas mulheres querem tanto e nem conseguem realizar o sonho de serem mães? Quantas crianças são abandonadas ou morrem no parto? Quantas vidas de bebês e crianças são tiradas pelos próprios pais e quantas mortes fazem parte da vida de mulheres que são mães? Enfim, a maternidade tem um lado assustador…

Em 2009, um crime ceifou a vida de duas crianças em Marechal Cândido Rondon e chocou e revoltou grande parte da população, inclusive, o fato ganhou mídia nacional, fazendo com que pessoas de diversos cantos do Brasil lamentassem a perda que as duas mães sofreram. A história é lembrada ainda hoje em muitas rodas de conversa.

O fato é que um ex-policial militar, Almir Soares, matou a tiros o vendedor Euclides Henrique Erzen, de 37 anos, a filha dele, Bruna Immich Erzen, de 12 anos, e o sobrinho, Fabrício Immich Catalan, de 2 anos.

Segundo as investigações do caso, comandadas pelo delegado da época, Antônio Donizete Botelho, a morte do vendedor foi um acerto de contas. A família das vítimas não sabia de nada e a história foi descoberta da pior forma possível, com o assassinato dele, da filha e do sobrinho.

Por que Almir não poupou pelo menos a vida das crianças? É uma das perguntas que não cala na mente e na boca das pessoas, e talvez nunca seja respondida.

Mas, e as mães da Bruna e do Fabrício, como estão? Como ficou a maternidade para elas depois desse fato trágico?

SOBRE AS MAMÃES

As mães de Bruna e Fabrício são irmãs.

Hoje, Vânia Immich tem 45 anos. Ela perdeu a filha, Bruna, de 13 anos, e o marido, e escolheu não ter outros filhos depois. Na época, Vânia tinha 31 anos. E, além da Bruna, tinha mais uma filha: a Bárbara, que precisava da força da mãe… Vânia teve que ir se levantando por ela. Bárbara já lhe deu duas netas, inclusive a primeira quando ela tinha apenas 16 anos. Vânia lembra que ficou brava com a filha ao descobrir a gravidez, mas como a Bárbara mesma diz “ela renasceu ao conhecer a neta”. E, apesar das meninas não substituírem a Bruna, amenizam a dor de Vânia por tê-la perdido. Com a perda da Bruna e de Euclides, Vânia decidiu que não faria mais planos, apenas viveria um dia de cada vez… E assim segue.

Vanessa Immich tem 43 anos e perdeu o Fabrício quando ela tinha 29. Ele tinha apenas dois anos. Ela morava em Medianeira e ainda não sabia se queria ter filhos quando veio a surpresa: estava grávida. Era o ano 2007. Vanessa tinha 26 anos e o namoro com o pai do Fabrício não deu certo. Então, mudou-se para Pato Bragado, onde o menino nasceu e era tudo que ela tinha… Em setembro de 2009, Vanessa conheceu o Wagner, seu marido, que com a ajuda de sua mãe, criava o filho Matheus que, coincidentemente, tinha a mesma idade do Fabrício. Hoje, além do Matheus, de 17 anos, que logo aprendeu a chamar Vanessa de mãe, o casal tem gêmeos, de oito anos: a Fernanda e o Felipe. Nenhum filho apaga a dor de Vanessa, mas foram lindos presentes que recebeu. Eles já sabem da história, e de vez em quando perguntam por que isso aconteceu… Por que aquele “tio” fez isso… Não existe uma justificativa confortante.

O DIA DO ASSASSINATO

Desde o dia do crime, seguir em frente é um desafio diário para as irmãs Vânia e Vanessa Immich. Relembrar o dia do assassinato dos filhos despedaça um pouquinho mais o coração delas. A dor de perderam as crianças é irreparável e nítida ao olhar para o rosto de cada uma. As lágrimas correm sem esforço e a voz teima em sair para contar a história. Ainda mais quando se aproxima o Dia das Mães… parece que a ferida sangra como se fosse no dia em que encontraram os corpos. Mas, depois de 14 anos, elas já conseguem abrir o coração e falar em uma entrevista como têm passado os dias sabendo que seus “anjinhos” as protegem de onde estão.

O assassinato das crianças aconteceu no dia 24 de janeiro de 2009, em Marechal Cândido Rondon, aproximadamente 20 km de onde residiam.

“Era um sábado e meu menino estava na piscina com a Bruna. Fui até eles e pedi para ela levá-lo para cortar o cabelo com a Vânia. Minha irmã tem salão e ele só cortava o cabelo com ela”, Vanessa começa.

Vânia e Vanessa lembram o quanto o menino era apegado à família da mãe. “Ele até chamava o Euclides de pai”, contaram as duas.

Bruna e Fabrício saíram da piscina e a menina fez o que a tia pediu: levou o primo até o salão da mãe para cortar o cabelo. Quando o corte estava quase pronto, chegou Euclides convidando-os para dar um passeio.

“O meu marido veio até o salão e disse: Vou para Marechal falar com certa pessoa e já volto. A Bruna estava na mesa de manicure pintando as unhas dela e já levantou para ir junto… E o Euclides disse que não ia demorar. Eu lembrei a Bruna que quando ela retornasse nós iríamos arrumar o guarda-roupa dela como já havíamos combinado no começo do dia e eles saíram”, Vânia conta.

Ela lembra que, geralmente, Euclides não dizia aonde iria e nem falava o nome das pessoas com quem conversaria. Porém, naquele dia foi diferente.

“Eu não sabia de tudo que ele fazia… aonde ia… e, às vezes, isso era motivo de discussões entre nós… Mas, naquele dia, ele falou que iria vender um carro para uma pessoa chamada Almir, um policial”.

Vânia conta que na hora não estranhou… E não teve nenhum pressentimento ruim. Euclides ainda disse que depois de conversar com o homem, passaria na sorveteria com as crianças e aí voltariam para casa.

“Se eu tivesse sentido algo estranho e tivesse falado para ele não levá-los, ele não iria. Mas, tudo estava normal. Ele era acostumado a levar as crianças para passear e deixou uns talões de cheque em cima da mesa em casa junto com a carteira e foram… O Euclides tinha os defeitos dele como homem e como marido, mas era um excelente pai”.

Antes de partirem, Bruna foi para casa, chamou a Bárbara, sua irmã de nove anos, mas a menina se recusou a ir junto. Ela preferiu ficar em casa assistindo desenho. Então, Bruna pediu o chinelo do Fabrício para a tia Vanessa e saíram de carro com Euclides.

“A Bruna entrou na casa e pediu “Tia, o Fabrício pode ir comigo e com o pai passear?” Era normal ele pegar as crianças e sair. Nunca tivemos problemas. Eram todos muito apegados. Ele sempre cuidava bem das crianças… Eu confiava nele, mas não sabia o que fazia… então, não vi problema. Eles saíram e eu nem cheguei a ver como o meu filho ficou com o cabelo cortado”, Vanessa recorda aos prantos.

As crianças entraram no carro e seguiram para Marechal Cândido Rondon com Euclides.

Vânia continuou no salão atendendo… Vanessa continuou fazendo o serviço de casa… E as horas foram passando. De repente, Vanessa começou a se sentir mal e foi até o salão da irmã.

“Ela começou a tremer e eu pedi se ela tinha almoçado, ela garantiu que sim e dizia que era só um mal-estar”.

Nem passava pela cabeça delas, contudo, pelas investigações policiais e a perícia, as crianças foram assassinadas naquele momento. Vanessa teve um pressentimento, mas não soube decifrar. Essa é uma capacidade que algumas pessoas têm de suspeitar de alguma coisa ruim que está prestes a acontecer. 

Vânia lembra que acudiu a irmã e logo em seguida fechou o salão, foi até a locadora, pegou um filme para assistirem juntos à noite, como de costume, e ficou com a irmã à espera de Euclides e das crianças.

O tempo passava e a noite chegou e eles não voltavam para casa.

“Como eles estavam demorando, comecei a ligar atrás e ninguém atendia. Nem o Euclides nem a Bruna que já tinha o telefone dela”, Vânia lembra.

Vanessa já estava tomada pelo desespero e Vânia se mantinha forte tentando contato com o marido.

“Quando eram 8 horas da noite daquele sábado, e eles não voltavam, fui na outra casa ligar do telefone fixo e nada. Na rua, encontrei uma equipe da Polícia Militar em patrulhamento e pedi se sabiam de algum acidente na estrada entre Marechal e Pato Bragado. Eles disseram que não havia ocorrência. Então, pedi ajuda para que tentassem localizar o nosso carro”, recorda Vânia.

E assim foi… uma noite inteira em claro, esperando por notícias, que não chegaram.

Na manhã seguinte, dia 25 de janeiro de 2009, Vânia resolveu ir até a Polícia, já que o marido e a filha não atendiam suas ligações. Os policiais, provavelmente com a intenção de tranquilizar Vânia, disseram que Euclides poderia ter ido jogar baralho, e que não teria acontecido nada com ele, nem com as crianças, que logo eles apareceriam.

Mas, Vânia não se aquietou. Ela sabia que o marido passeava com as crianças e sempre voltava dentro de poucas horas para casa. “Sabíamos que tinha alguma coisa errada”, Vânia lembra. Ela e a irmã só não pensavam que os próximos dias seriam os mais traumatizantes de suas vidas.

“Euclides sempre deu tudo que as crianças precisavam. Ele sabia que Fabrício era alérgico e precisava tomar leite de cabra. Por isso, não ficaria fora de casa com eles tanto tempo”, Vânia relatou aos policiais.

Naquele momento, ela sabia que iniciariam uma busca incessante até encontrar o marido e as crianças.

E Vanessa, em casa, só lembra “que estava sem chão”, que sentia algo diferente a todo momento, mas nem mesmo depois de todos estes anos consegue explicar aquela sensação terrível.

Vânia insistiu que os policiais lhe ajudassem. Conversando com a equipe, ela conseguiu o endereço do ex-policial para quem Euclides disse que venderia o carro e foi procurar a casa dele. Chegando lá, apenas conseguiu contato com alguns vizinhos que disseram ter visto um carro sendo puxado por uma corda para os fundos da casa de Almir, na tarde passada e, antes disso, tinham visto duas crianças por lá, detalhe que chamou atenção porque não era normal.

Cada minuto sem notícias era torturante. E as pistas de um possível crime faziam Vânia querer ir mais longe, não haveria sossego enquanto as crianças não aparecessem. Porém, em nenhum momento, passou pela cabeça dela e da irmã que os três poderiam estar mortos.

“A gente sabe que em algum momento vai perder alguém, mas nunca estamos preparados. Nunca queremos acreditar que chegou a nossa hora de passar por isso. Quando acontece um acidente com alguém que gostamos muito, esperamos que a pessoa esteja viva. Quando um filho sai, rezamos para que volte em segurança. Quando precisamos deixar um filho com outra pessoa, pedimos que estejam protegidos naquele lugar. Nunca estamos preparados para perder alguém que amamos muito”, comenta Vânia.

O DIA EM QUE ACHARAM OS CORPOS

Ao ouvir o que os vizinhos tinham presenciado, Vânia voltou para a delegacia. E enquanto contava a história que tinha ouvido, os policiais receberam um chamado sobre um incêndio, possivelmente criminoso, em um veículo nas proximidades de onde hoje é o CTG (Centro de Tradições Gaúchas) Tertúlia do Paraná de Marechal Cândido Rondon.

Vânia foi orientada a esperar na delegacia até que os policiais retornassem com notícias e com informações sobre o carro em chamas.

Ela não consegue recordar tudo que sentia. Segundo as irmãs, em alguns momentos o cérebro parece ter entrado em pane, algumas sensações e memórias simplesmente foram apagadas.

Logo que os policiais retornaram, Vânia teve a confirmação: pela placa, o Gol em chamas era dela e do marido.

“Mas não haviam corpos no veículo”, disseram os policiais.

Os celulares de Euclides e da Bruna haviam sido queimados junto ao carro. Especificamente, em cima de um dos bancos do veículo. Entretanto, sem corpos, Vânia e Vanessa ainda conseguiam manter a esperança de que as crianças estivessem bem.

As investigações corriam e, na terça-feira (27), a polícia já sabia que precisaria dar a pior notícia possível para as duas mães. Depois de executar Euclides dentro da sua casa, Almir foi até o carro onde as crianças estavam e matou friamente as duas com tiros na cabeça. 

Mas a polícia ainda não tinha encontrado os corpos e não podia revelar a morte para as mulheres, que se mantinham firmes na fé de que, com as pistas descobertas, encontrariam seus filhos em breve e poderiam abraçá-los depois de todo aquele pesadelo.

“Eu me sentia perdida. Durante toda a semana, não tinha condições de trabalhar. Eu ia para o trabalho, mas não conseguia me concentrar, não conseguia realizar as minhas funções. Eu só queria notícias do meu filho”, Vanessa recorda.

Somente na quinta-feira (29), pela manhã, um agricultor da Linha Guarani ligou para a PM para informar sobre o achado de dois cadáveres em avançado estado de decomposição, desovados em uma lavoura de milho.

Tony Repórter: Encontrados corpos de vendedor, filha e sobrinho

Nesta hora, Vânia estava na delegacia em busca de novas notícias.

Sem contar sobre o achado a ela, os policiais pediram que a mulher fosse para casa buscar peças de roupas das crianças.

“Eles pediram que eu buscasse roupas para que eles iniciassem a procura das crianças com cães”.

Ao chegar em casa, Vânia se encontrou com a irmã e uma amiga e, de repente, enquanto conversavam, ouviram no rádio que os corpos de seus filhos tinham sido encontrados.

Vanessa só lembra que teve que ser segurada pela amiga.

“Aí fomos para a delegacia e nos disseram que não acharam as crianças da forma que eles queriam”, Vanessa diz.

“Como eu estava a todo o momento na busca, eu já fui preparada para o que encontraria. Mesmo assim, o meu psicológico não aceitava que eles estivessem mortos, quando o perito falou a altura da minha filha, eu disse que não era ela… que ela era mais pequena… Eu não queria aceitar”, Vânia recorda.

Depois de saberem da morte, de verem, literalmente, o chão se abrir diante delas, Vânia e Vanessa tiveram que encarar uma parte da maternidade que não é um sentimento afável para uma mãe: viver sem uma parte delas.

Com o luto veio a tristeza, a culpa e vários questionamentos…

“Eu cuidava tanto dele e na hora que ele precisou eu não estava lá. Eu culpava até a Deus pedindo ‘por que Ele não colocou a mão na frente das crianças?’ Ele poderia ter feito isso, Ele tinha esse poder. Mas já parei para pensar ‘o que poderia ser dele hoje?’ Neste mundo que está tão complicado… Será que Deus fez um livramento?”, Vanessa se pergunta.

Infelizmente, como diz Vânia, as crianças “estavam no lugar errado, na hora errada”. E isso tudo até pode fazer parte de um propósito da vida delas, mas, de todas as maneiras, perder um filho é algo trágico e não há palavras que possam confortar o coração de uma mãe, nem o fato de ter alguém para culpar pela morte ameniza a dor.

O corpo de Euclides foi achado no dia do enterro da Bruna e do Fabrício, a cerca de um quilômetro de onde eles estavam. Seu corpo estava enrolado em três cobertores e amarrado a uma viga de madeira.

“Muita gente diz que ele levou as crianças para se defender, mas ele nunca faria mal a elas. Eu não acredito nisso”, diz Vânia.

A MATERNIDADE DEPOIS DA PERDA

Almir foi preso naqueles dias e levado ao banco dos réus mais de um ano depois, no dia 24 de setembro de 2010. O juiz lhe condenou a 65 anos de prisão por triplo homicídio qualificado, com a agravante de duas das vítimas serem crianças, ocultação de cadáver e dano qualificado, já que teria incendiado um veículo para não deixar vestígios. Ele também teve que indenizar as mães e a esposa das vítimas pelas mortes.

Mas, e a parte que não pode ser compensada com dinheiro, como por exemplo, o sorriso da Bruna e do Fabrício que Vânia e Vanessa nunca mais viram? O colo e o abraço que nunca mais deram. As coisas que ficaram para ser ensinadas? O corte de cabelo do Fabrício que a Vanessa nem viu. O guarda-roupa que nem compensava mais arrumar porque, na verdade, poderia ser todo desfeito para não torturar ainda mais as lembranças dessa mãe?

Vânia não sabe dizer o que sente em relação a Almir. Entretanto, muitas vezes pensa que gostaria de perguntar por que ele fez isso. E é essa pergunta que fica: Por que ele fez isso?

“Se o Almir pode ter uma segunda chance, por que minha filha e meu sobrinho não puderam ter? Tenho dias de raiva, tem dias que eu não lembro que o assassino existe. Se ele está sofrendo ou não, se ele se arrependeu ou não, se ele morrer hoje ou não, para mim não faz diferença, não vai trazer a minha filha de volta.”, diz Vânia.

Vanessa não conseguia olhar para Almir no dia do julgamento. Ela lembra que parecia ter uma parede entre a visão dela para onde ele estava.

“Ainda é difícil digerir o que ele fez. Eu não conhecia ele, não sabia que ele existia. Por que ele fez isso? No meu coração, para eu ter paz, acredito que preciso perdoar o que ele fez. Quero que o meu filho venha me buscar quando chegar a minha hora. Mas, é claro, que mesmo com essa dor, antes quero educar e criar os presentes de Deus que tenho agora”, Vanessa expõe.

Os exames policiais apontaram que as crianças não sofreram no momento do assassinato. O tiro foi fatal. Mas a Bruna viu o que ia acontecer e não teve chances de defesa. O Fabrício estava dormindo no colo dela. Será que ela chamou pela mãe? Afinal, é uma reação espontânea de medo e susto. Que a atire a primeira pedra quem nunca gritou “Mãe!!!” num momento de desespero ou necessidade. Até para encontrar uma coisa simples dentro de casa qualquer um de nós já chamou pela mãe.

“Como eu não estava lá para cuidar do Fabrício, a Bruna protegeu ele para mim”, Vanessa fala enquanto as lágrimas escorrem desenfreadamente por seu rosto.

As duas relatam que têm bloqueios de memória daquela semana horrível. E ainda bem… Alguns detalhes nem merecem ser lembrados.

“Nunca vi uma foto de como os corpos estavam, não sou leiga, sei que estavam em avançado estado de decomposição, mas eu quis manter a minha lembrança deles. Doía quando alguém contava como eles estavam. Eu não li reportagens, não olhei nada. Se eu quisesse, ainda poderia acessar e ver, mas prefiro manter a boa lembrança”, Vanessa relata.

Em respeito às mães, o Portal Rondon não insere aquelas imagens nesta reportagem. A história já arrepia, aperta o coração de quem ouve ou lê…

Vanessa nem recorda se conversou com as pessoas que estavam no velório. Só lembra que, no dia seguinte, notou que sua boca estava toda ferida, de tanto que ela mordia os próprios lábios nos momentos de aflição.

Vânia lembra de ver as pessoas se lamentando pelas mortes, tentando confortá-las… algumas até de um jeito equivocado…

“Acho que deveria tirar dos velórios a ideia de abraçar as pessoas em luto e dizer um monte de coisas porque não ajuda a curar a dor. Não vai passar. A gente aprende a conviver, mas não passa. Como alguém pode chegar em uma mãe e dizer: “Foi melhor assim”… se o melhor era a minha filha estar viva e estar bem comigo? Hoje eu penso que a Bruna e o Fabrício cumpriram a missão deles. E a minha missão é ter passado por isso? É conviver com essa dor? Pode ser. Mas, por que? A gente não entende… Mas cada um sofre por alguma coisa e deve ter um propósito…”, Vânia complementa.

Hoje, Bruna teria 27 anos e Fabrício 17. As mães passam horas imaginando como eles seriam, o que poderiam estar fazendo, quais seus sonhos. A tia Vanessa e a mãe lembram que a Bruna adorava tirar fotos. “Acho que ela queria ser modelo”, Vanessa aposta.

“Ela era miudinha e muito ligada em fotos, poses… uma vez até enviou uma foto para a Rola Moça. Era muito alegre, espontânea, onde estava sempre tinha gente em volta”, lembra a mãe da menina. “E o Fabrício… vejo as crianças que iam com ele na creche e imagino como seria hoje”, conta a tia.

Recordar faz parte… pensar em como seriam Bruna e Fabrício, que profissão escolheriam, quais conquistas já teriam, que objetivos de vida traçariam, se a Bruna já teria filhos… são coisas que acabam vindo à mente delas sem muito esforço. Afinal, a morte deles não foi planejada. Eles foram arrancados de suas mães. Não dá para esquecer que os sonhos existiam. De lá para cá, sempre há um vazio, sempre falta alguma coisa. Chega o Dia das Mães, tudo que elas têm desde então está ali com elas… porém, ainda assim, falta alguma coisa. Elas nem puderam se despedir dos filhos. E, talvez, esse seja o ponto mais difícil de trabalhar dentro delas em busca de uma cura para essa dor que elas têm certeza que nunca vai passar.

“Não tem um dia que eu não pense nele. Não tem um dia que eu não lembre dele”, diz Vanessa. “O Fabrício era uma criança muito doce”.

Na estante da sala, ainda estão os quadros das crianças, recordações do Fabrício misturadas com as fotos dos gêmeos da Vanessa. Lembranças da Bruna em meios às fotografias da Bárbara e das netas da Vânia.

E para se desfazer de coisas que elas não podiam manter? Roupas, berço, objetos importantes para as crianças… Outro passo extremamente complicado…

Vanessa conta que demorou bastante para desapegar das coisas do Fabrício. Demorou entender que os objetos dele não trariam ele de volta.

“Fiquei com tudo quase dois anos. Até com o berço montado. Eu precisei mudar de casa para começar a me desapegar. Depois de um bom tempo eu dei algumas roupas e brinquedos para uma pessoa. Passou mais um tempo e eu dei mais um pouquinho de coisas para outras pessoas e assim fui me desfazendo… E algumas roupas dele, Felipe, gêmeo da Fernanda ainda usou”.

A Vânia conta que precisava se desfazer das coisas com mais urgência que a irmã… Ela tinha a Bárbara e até deixou algumas roupas da Bruna para ela usar, mas levava um choque toda vez que via a filha com alguma peça…

“Não é que eu não queria a lembrança, mas era difícil estender a roupa de uma filha que não estava mais ali. Até cheirinho dela parecia que eu sentia… Por isso, fui me desfazendo das coisas dela… Eu sofro por ela, mas não chamo por ela… Queria abraça-la, beijar, dar um tchau quando se foi, mas não consegui me despedir, sempre tenho a impressão de que ela vai voltar”…

As irmãs tentam de várias formas diferentes amenizar a dor porque precisam continuar a vida por elas e pela família que têm… Vanessa inventou de fazer curso de crochê, de unha… e está o tempo todo fazendo alguma coisa para se ocupar. “Eu não paro”, ela comenta.

Vânia já deu cursos para clubes de mães, para pessoas com depressão, deu depoimentos em encerramento de reuniões…

“Muita gente sempre disse que mesmo com tudo que aconteceu eu nunca desci do salto, mas não é bem assim. A gente chora se tocar no assunto, mas sabe que precisa tocar a vida em frente. Dói. Hoje ainda passo noites acordada, chorando, lembrando… Quando as pessoas falam dá um nó na garganta, ainda não entendo por que nós tivemos que perder nossos filhos… Mas acredito que nosso destino está traçado”…

Nenhuma delas se conforma quando assistem aos jornais e veem como os pais maltratam as crianças.

“O que passa na cabeça de uma pessoa de jogar um filho de uma janela? Por que tem mulheres que querem tanto ter um filho e não conseguem gerar? São por quês que a gente não entende… E a morte tem uma desculpa? Nossos filhos morreram em uma tragédia, foram arrancados de nós. Mas e as pessoas que estão atravessando a rua e morrem, e aqueles que caem de uma árvore enquanto estão trabalhando e morrem, os que enfartam do nada e morrem. Nada disso tem uma explicação. Aprendi que temos que viver um dia de cada vez”, Vânia finaliza.

O medo de perder outro filho é constante desde a tragédia. Mas elas confiam que não precisarão passar por isso de novo. E o máximo que conseguem ficar com seus filhos, mãe e netas, no caso da Vânia, elas ficam.

Vanessa com os gêmeos, Vânia e uma das netas

As duas se agarram ao que ficou para seguir… Tem dias que conversam sobre isso e ficam “de boa” e tem dias que são mais doídos, dias em que não dá para falar e dias que não podem nem olhar para a foto das crianças. Vânia e Vanessa sabem que essa é uma ferida que nunca vai cicatrizar completamente. É uma ferida que está ali. Tem dias que sangra bastante. Mas elas tiveram que aprender a conviver com a ausência, e lembrar de tudo que foi bom… Aprenderam a viver com a saudade..

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