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Columbine: após 24 anos, segue a busca por mudança de postura

Jornalista que acompanhou a dor e o ativismo do pai de uma das vítimas reflete sobre os desafios atuais para se conter a persistente violência

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Jeff Haynes/ AFP
Imobiliária Maurício Vazquez

Poucos dias após o ataque à Escola Columbine, no Colorado, no qual dois alunos mataram 12 colegas e um professor e depois cometeram suicídio, o pai de uma das vítimas embarcou numa das viagens mais angustiantes de sua vida. Durou menos de 30 minutos, mas teve o tempo de uma eternidade. Tom Mauser, então com 47 anos de idade, estava em busca de fotos jamais vistas de seu filho Daniel, morto aos 15 no massacre que chocou os Estados Unidos e repercutiu no planeta. Aquelas seriam as imagens da formatura do rapaz — um sonho de família destruído a tiros. E eu estava ao lado dele naquele trajeto, no banco do carona.

Mauser pegou uma via expressa em que a paisagem com as Montanhas Rochosas ao fundo dava um tom ainda mais melancólico à jornada. O destino: um estúdio fotográfico nos arredores de Denver. Aquele percurso tinha sido a única oportunidade que Mauser havia me oferecido para uma entrevista:

Dr Guilherme Dentista

— Se puder me encontrar já, venha comigo e conversamos.

Corri até o local marcado e encontrei um homem cordial e bem mais sereno do que eu poderia esperar, diante do terrível drama que ele vinha enfrentando. Estava condoído e muito abalado, mas mantinha o pensamento claro e estruturado.

Quando chegamos ao endereço, Mauser pediu que eu esperasse no veículo. Queria privacidade naquele instante tão duro. Mas, ao regressar, não conteve mais a emoção. Chorou convulsivamente, abraçado às fotos de Daniel sorrindo, como nos retratos clássicos que vemos nos filmes sobre High School nos EUA.

Voz contra armamentos

O homem que vi desabar diante de mim se transformou num gigante do ativismo neste quase meio quarto de século desde o terror na escola — que completa 24 anos hoje. Tom Mauser é atualmente uma das mais persistentes vozes contra a permissiva cultura das armas nos EUA, apontada como um dos elementos que facilitaram a ação no Colorado e em uma extensa série de ações de imitadores.

O massacre de Columbine, em 20 de abril de 1999, tornou-se uma espécie de marco na cobertura jornalística e nos estudos sobre ataques similares, a começar pela procura de responsáveis além dos que fizeram os disparos — quem influenciou, foi negligente ou cúmplice por omissão. As lições aprendidas desde então podem ser úteis num momento em que o Brasil se assombra com uma onda similar de violência.

O lado perverso da repercussão daquele crime é que ele também se tornou objeto de adoração em comunidades subterrâneas na internet.

— Columbine é o paradigma, o evento mais cultuado nesses grupos — afirma Pablo Ortellado, colunista do GLOBO, professor de Gestão de Políticas Públicas na USP e uma das maiores referências no estudo de mídias sociais no país.

A artilharia se volta também contra a indústria cinematográfica — e seus filmes de ultraviolência — e jogos eletrônicos em que vence quem promove o maior banho de sangue virtual.(…) Provedores da internet, que permitem acesso a sites que ensinam a fabricar bombas ou mantêm homepages racistas, estão na lista dos que devem enfrentar restrições governamentais ou sanções espontâneas da sociedade civil.

Parece familiar o cenário acima? Pois foi o que escrevi em reportagem no jornal O DIA 24 anos atrás. Troque “provedores da internet” por “redes sociais” ou “plataformas” e teremos algo bem próximo do que é o debate atual. Falhamos no entendimento do fenômeno aqui e nos EUA? Não tivemos, como sociedade, força para exigir junto a empresas, governos e legisladores as mudanças devidas para proteger jovens e crianças?

Mesmo consternado, Tom Mauser já articulava naquela entrevista a lucidez e o senso prático que guiariam sua militância. Tinha foco na crítica à liberalidade do acesso a armamentos de diversos calibres e, muitas vezes, com pouca ou nenhuma checagem de antecedentes criminais:

— Em primeiro lugar, culpo os adolescentes que apertaram os gatilhos. Mas, em segundo, colocaria culpa na cultura de violência nos EUA, que tira o sentido da vida humana. Temos que pedir a diferentes setores da sociedade que façam sacrifícios. Me refiro às indústrias armamentícia, cinematográfica, de entretenimento. Mas não podemos nos esquecer dos pais, que desempenham um papel-chave nesse processo. Você tem que ficar atento ao que acontece na vida dos seus filhos — disse Mauser, na ocasião.

Em resumo: “sacrifícios” de diferentes atores da sociedade. Uma mudança de perspectiva e de postura diante de um cenário cada vez mais ameaçador. Ortellado elenca três medidas que devem ser tomadas imediatamente para enfrentar a escalada dos ataques.

A primeira delas já está em andamento e foi adotada por diversos veículos de comunicação, inclusive os do Grupo Globo: um novo protocolo para a cobertura. A ideia é “não mostrar imagens, não nomear os agressores e não citar manifestos ou cartas que apresentem motivos para o ataque”, partindo do entendimento de que assassinos estão em busca de fama, e que essa divulgação, ainda que contextualizada e de forma crítica, pode contagiar outros jovens.

Fator contágio

A segunda tem conexão com a anterior. As redes sociais precisam retirar com rapidez conteúdos que glorifiquem os algozes e seus crimes. É essencial a agilidade contra a celebração da violência.

— Esses jovens buscam notoriedade, querem seus nomes na história da infâmia. Quando agimos na imprensa e nas mídias sociais, ao deixarmos de citar seus nomes e exibir as imagens, eles perdem a fama do jeito que procuram — diz Ortellado.

Em terceiro lugar, segue o estudioso, estão as iniciativas no campo policial. Um trabalho aprofundado de inteligência é a base para identificar e monitorar agressores, alertando pais e escola. O pesquisador acentua que, pelo fato de os crimes usualmente serem idealizados e divulgados na internet, é essencial que a Polícia Federal faça monitoramento permanente.

Novas abordagens

O diagnóstico do problema, contudo, será sempre resultado do contexto de seu tempo. Se hoje os veículos optam por uma narrativa restritiva, sob o argumento de que o apelo dos assassinos reside justamente na divulgação da crueldade, em 1999 foi o próprio Mauser quem me contou detalhes de como seu filho foi alvejado. Sua intenção: enfatizar o quanto o rapaz e outras vítimas amavam a vida, de que forma lutaram e como não tiveram chance de defesa contra armas de fogo. Havia a convicção de que era preciso sensibilizar o cidadão com a descrição das cenas. Só que o efeito colateral foi danoso: os assassinos tiveram seus crimes exponencialmente exibidos.

Na ocasião, sucessos do cinema foram apontados como inspiração. O ano de 1999, por exemplo, foi o de estreia da franquia Matrix. Vivido por Keanu Reaves, o herói Neo adota roupa preta e usa óculos escuros, um traje que torna ainda mais impactantes as elaboradas cenas com tiroteios. O fato de os assassinos do Colorado também vestirem roupas escuras e fazerem parte de um grupo autointitulado “Máfia do Sobretudo” foi suficiente para uma associação com o massacre.

Parte da opinião pública apontou os dedos para os games. De fato, os dois criminosos eram fãs de jogos de mortes em série, em particular de “Doom”. Mas também nesse caso o que mais surpreendeu foi a descoberta de que pelo menos um dos atiradores alardeava seu ódio a professores e colegas em chats e sites associados ao jogo. Chegou a ser denunciado, mas nada foi feito.

Para o sociólogo Amaro Grassi, coordenador de Pesquisas na Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas, a tentativa de se encontrar culpados na indústria de entretenimento foi uma perda de foco. No caso brasileiro, ele aponta o fenômeno da importação de um “caldo cultural”.

— Eu acredito mais na questão política, que é muito presente nos EUA, por meio da cultura da violência e do armamento. E também no papel das mídias digitais na facilitação da circulação desse tipo de conteúdo — comenta Grassi.

Apesar de o fato de os dois ataques mais recentes no Brasil não terem sido com o uso de armas de fogo, mas sim de armas brancas, isso não enfraquece o sentido de “fator de contágio”, pois o criminoso almeja o status de “celebridade”.

Daniel Mauser tinha uma irmã mais nova, Christine, quando morreu. E é ao lado dela e dos netos, no Oregon, que Tom vai passar este 20 de abril. Nesta data, a cada ano, Christine costuma postar em suas redes sociais uma foto de sua infância feliz com o irmão.

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