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Enquanto ex-presidente é enterrado, gangues aterrorizam capital do Haiti

Relatos de sequestros, ataques letais e destruição indiscriminada não têm fim na cidade costeira de Porto Príncipe, capital do Haiti

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O presidente do Haiti, Jovenel Moise, foi morto em um ataque em sua residência Foto: Joseph Odelyn/AP
Rui Barbosa

Sequestrados na igreja, alvejados durante um caminho noturno, expulsos de suas casas enquanto as ruas são tomadas pelo fogo. 

Relatos de sequestros, ataques letais e destruição indiscriminada não têm fim na cidade costeira de Porto Príncipe, capital do Haiti, onde todos parecem conhecer alguém que escapou por pouco da morte – e, de fato, muitos não conseguiram neste que é definido por organizações de direitos humanos como um ano particularmente perigoso mesmo antes do assassinato de Jovenel Moïse, então presidente do país, cuja morte chamou a atenção do mundo. 

Ótica da Visão

A elite do Haiti se reuniu nesta sexta-feira na histórica cidade portuária de Cap-Haitien para o funeral de Moïse. Sua viúva, Martine, a ex-primeira-dama que foi ferida no mesmo ataque de 7 de julho que matou seu marido, se dirigiu aos enlutados com um aviso sombrio. 

“As aves de rapina ainda correm pelas ruas, suas garras sangrentas ainda procuram por presas. Elas nem mesmo se escondem, elas estão aqui, apenas nos observam, nos ouvem, esperam nos assustar. Sua sede por sangue ainda não foi saciada”, disse ela, em uma aparente referência aos assassinos de seu marido. 

A investigação do crime ainda em andamento tem vários suspeitos que estão à solta, além de um idealizador do ataque, que ainda não foi identificado. 

Com o ex-presidente enterrado na região em que nasceu, a expectativa é que a disputa por poder recomece de maneira vigorosa. Analistas políticos querem saber se a aliança recente entre dois primeiros-ministros rivais será mantida, se o governo provisório finalmente realizará as eleições esperadas pela comunidade internacional e se a coalizão sociedade civil haitiana poderá finalmente se unir para propor um governo de transição alternativo. 

Mas na capital, Porto Príncipe, muitas famílias haitianas estão mais preocupadas em fugir de suas próprias “aves de rapina”. 

Desde junho, mais de 15.500 pessoas da cidade tiveram de deixar suas casas por conta da violência entre gangues e incêndios criminosos. Os habitantes que conseguem evitar a exposição direta à violência têm de conviver com um processo hiperinflacionário, frequentes quedas de energia e falta de comida e combustível, em grande parte graças a ação de grupos que obstruem as principais estradas. 

Além disso, embora os ricos ainda vivam confortáveis em condomínios de muros altos nas encostas mais elevadas da cidade, nenhuma quantidade de dinheiro pode garantir a segurança contra a crescente ameaça de sequestros. 

Este tem sido um verão incendiário em Porto Príncipe. Centenas de casas por toda a cidade foram queimadas pelas gangues – e até mesmo, dizem algumas das vítimas, pela própria polícia que luta contra elas; Marie Michele Vernier, secretária de imprensa da Polícia Nacional do Haiti, diz que essas acusações “não foram confirmadas” e que “a polícia jamais se comportaria dessa forma”. 

Yslande, de 38 anos, e seus três filhos foram forçados a fugir de sua casa no bairro de Delmas no meio da noite de 4 de junho. “Há pessoas atirando umas nas outras no meio da rua. Os criminosos vieram para cá e disseram ‘ou você sai da casa, ou você vai morrer'”, conta ela. 

Sem tempo sequer para pegar suas roupas, a família fugiu rua abaixo em direção ao estacionamento de um banco na parte baixa de Delmas, onde passou a noite. Cerca de 400 famílias teriam destino semelhante antes de serem alocadas em uma igreja local, de acordo com Chrisle Luca Napoleón, chefe da organização OCCEDH, que ajuda crianças vulneráveis. 

Yslande e sua família agora vivem em um prédio de blocos de concreto sem acabamento, lotado, ao lado da igreja, onde a OCCEDH e o Unicef montaram banheiros rudimentares e fornecem alimentos para as famílias expulsas de suas casas. No local não existe espaço privado. Em um quarto, buracos nas paredes funcionam como janelas, e dezenas de pessoas disputam o espaço para se sentar ou deitar. Os trabalhadores humanitários alertam para o risco de violência sexual e prostituição de menores em torno desses abrigos. 

“Isso aqui não é confortável nem seguro para meus filhos”, diz Marijou, uma mãe de quatro crianças, incluindo um recém-nascido, cuja casa foi consumida pelas chamas. A CNN optou por não usar os sobrenomes das vítimas por motivos de segurança. “O prédio não está em bom estado, tenho medo dos danos que poderiam ocorrer caso aconteça um novo terremoto. Vento e chuva entram pelo prédio e o bebê chora o tempo todo”, diz a mulher de 30 anos. 

No entanto, ao ser questionado sobre para onde ela iria em seguida, Marijou ficou perplexa. “Não sei, não sei ainda. Nós perdemos nossa casa e tudo o que tínhamos. Isso vai depender das autoridades e do estado”. 

As gangues controlam mais de 60% da região metropolitana de Porto Príncipe, estima Pierre Esperance, diretor-executivo da Rede Nacional de Direitos Humanos do Haiti. 

Mais de 200 mil pessoas são efetivamente reféns em suas próprias casas por infortúnios geográficos e não têm acesso a serviços básicos e transportes em áreas controladas por essas gangues. Vivem em lugares onde nem mesmo a polícia ousa ir. 

O controle dos criminosos na capital do Haiti tem efeito mesmo fora dos limites da cidade. Como principal cidade portuária do país, Porto Príncipe se tornou um ponto de estrangulamento para comida e combustíveis importados, fora os carregamentos recém-chegados de vacinas contra a Covid-19. 

“Mesmos haitianos que vivem no resto do país são afetados”, explica Esperance, que culpa o ex-presidente Moïse por permitir a ascensão dos grupos criminosos. “Nós produzimos bananas, inhame, abacate, batata-doce, mandioca. As pessoas do interior vêm para a capital para vender esses produtos, mas, hoje, essas pessoas não podem vir por conta dos problemas de segurança pública. Elas não podem vir por causa dos gângsters, o que os leva a uma profunda pobreza”, conta Esperance. 

Mais da metade da população do Haiti vive abaixo da linha da pobreza.  

‘Temos que vencer a luta contra a falta de segurança’

O assombroso assassinato de Moïse – pelo qual pelo menos 24 policiais e vários chefes de forças de segurança do Haiti estão sendo investigados – dificilmente inspirou confiança na capacidade do governo remanescente de atender às necessidades de segurança de tantos outros, tampouco criou a sensação de que frear a violência contra os pobres da cidade é uma prioridade político, já que as autoridades disputam o vácuo de poder deixado por Moïse enquanto tocam uma investigação de alto nível a respeito do homicídio. 

Em uma coletiva de imprensa realizada na semana passada, o ministro das Relações Exteriores, Clause Josepeh – então primeiro-ministro interino -, alertou os ouvintes de que qualquer pessoa com interesse em parar as investigações teria que matá-lo antes. 

Ao lado do chefe de polícia do Haiti, Leon Charles, Joseph disse que os criminosos que mataram Moïse calcularam mal a resposta do governo ao assassinato: “Os assassinos pensaram que poderiam matar o presidente e forçar o resto do governo a fugir”, disse ele. 

No entanto, a resposta do governo do Haiti às atrocidades cometidas contra as pessoas comuns tem sido menos vigorosas. 

As forças policiais haitianas costumam ser alvo de violência criminal. De acordo com o Centro de Análise e Pesquisa de Direitos Humanos (CARDH, na sigla em inglês), 29 policiais foram mortos entre 1º de janeiro e 21 de junho, incluindo alguns que foram brutalmente mutilados e queimados. Quatro foram sequestrados em troca de resgate. 

Um policial que trabalha no mesmo bairro onde o presidente foi assassinado falou à CNN, sob condição de anonimato, que usar uniforme de policial era como “vestir um alvo” nas costas, e que é comum atirarem contra ele durante as patrulhas de rotina na cidade. 

O novo líder do Haiti, o primeiro-ministro Ariel Henry, reconheceu a brutalidade galopante durante seu discurso de posse nesta semana, dizendo que seu novo governo “se curva” diante das vítimas de violência do país. Ele também prometeu revigorar as forças de segurança com o objetivo de garantir eleições pacíficas.

“Policiais de todas as categorias membros das Forças Armadas do Haiti, para deter esta crise em nossa sociedade, temos que lutar contra a falta de segurança. Eu vou reforçar a capacidade das Forças Armadas de responder melhor aos crimes. Estejam à altura de suas tarefas e sigam a lei como seu guia”, disse Henry.

A proliferação de acampamentos de refugiados em toda a cidade testemunha a atual incapacidade das forças de segurança em lidar com a crise – e a luta do governo para fornecer cuidados aos que foram deslocados.

Um centro esportivo que foi transformado em abrigo temporário agora só pode ser acessado com segurança por helicóptero, de acordo com trabalhadores humanitários, devido à atividade de gangues nos bairros próximos. E em uma escola que foi transformada em abrigo para cerca de 200 pessoas com deficiência cujas casas também foram incendiadas, é quase impossível andar de uma ponta a outra do prédio sem esbarrar ou pisar em alguém.

“Está calor aqui, as pessoas estão se deitando umas sobre as outras como sardinhas”, disse à CNN Philogene Jocelin, coordenadora e porta-voz da comunidade de deficientes. “O governo não pensa nos deficientes”.

Questionado sobre a morte de Moise, ele responde amargamente: “Se o presidente está lá ou não, não importa. Sua presença não nos ajudou; sua ausência não é da nossa conta”.

Enquanto ondas de incêndios criminosos atingem em grande parte os bairros mais pobres e densamente povoados, os sequestradores atacam pobres e ricos sem reservas. De acordo com o CARDH, que rastreia sequestros, cerca de 200 pessoas foram sequestradas no mês de junho – em comparação a cerca de 91 em abril e 27 em março.

O sequestro funciona até mesmo como um negócio a granel, com vários grandes grupos de pessoas sequestradas na segunda quinzena de maio, diz o CARDH. Na semana passada, 16 pessoas foram tomadas como reféns de um ônibus operado pela empresa local “Sans Souci” – que em francês significa “não se preocupe”. Eles foram soltos mais tarde naquela noite, disse um porta-voz da companhia.

Um casal, marido e mulher Chrisner e Merline, disseram à CNN que foram sequestrados em janeiro, quando estavam saindo da igreja. “No final do culto, estávamos de saída e já havia algumas pessoas do lado de fora. Quando os vimos, nos viramos para voltar pelo portão aberto, mas eles correram atrás de nós”, disse Chrisner à CNN. 

“Eles nos disseram que se não pagássemos o resgate eles iriam nos matar. Disseram que nossas fotos seriam tiradas enquanto jazem mortos em uma pilha de lixo, e que nossa família teria que recolher os corpos no depósito”. O casal pediu que a CNN omitisse seus sobrenomes por questões de segurança.

Eles passaram cinco dias como reféns, enquanto sua igreja arrecadava dinheiro para pagar o resgate – 600.000 gourdes haitianos, ou cerca de US $ 6.300. O casal, um segurança e uma vendedora de cosméticos, descarta a ideia de que algum dia poderão devolver o valor à comunidade que o arrecadou.

Várias vítimas de sequestro e suas famílias disseram à CNN que ainda estavam trabalhando para saldar dívidas, depois de pedir dinheiro emprestado a amigos, empregadores e até bancos para pagar resgates. E mesmo eles são relativamente sortudos; algumas famílias nunca conseguem reunir os fundos exigidos.

Em um caso que se tornou notório em todo o país, mesmo em meio a centenas de sequestros neste ano, uma menina de 5 anos foi encontrada morta no início deste ano com sinais de estrangulamento.

Sua mãe, uma vendedora de amendoim, disse à Reuters que não conseguiu o equivalente a R$ 24,4 mil como resgate.

‘A pressão sobre Washington para fazer algo se tornará irresistível’

Na esteira do assassinato de Moise, uma preocupação implícita dos governos regionais, incluindo os Estados Unidos, é que a instabilidade política no Haiti pode levar a novos fluxos de migrantes em direção às suas fronteiras – o que costuma ser referido em Washington como uma crise de migração. 

O ex-embaixador dos Estados Unidos no Haiti James Foley advertiu esta semana no The Atlantic: “Se o caos endêmico se transformar em anarquia completa, enviando haitianos em grande número para barcos frágeis em direção à Flórida, a pressão sobre Washington para fazer algo se tornará irresistível”.

Mas a crise perseguiu os haitianos por meses antes da morte de Moise, e pouca proteção foi oferecida contra as forças mortais que levam alguns a fugir para o exterior. No mês passado, a polícia nas vizinhas Ilhas Turks e Caicos interceptou um barco que transportava 43 haitianos e os entregou às autoridades de imigração para repatriação.

Para Chrisner e Merline, a sombra do medo que paira sobre Porto Príncipe agora tem uma forma clara e específica. Eles agora estão com muito medo de serem sequestrados novamente para voltar ao trabalho, saindo de casa apenas para ir à igreja, que se tornou uma tábua de salvação para eles.

Ambos gostariam de pedir asilo no exterior, mas o processo de obtenção dos documentos necessários está atolado em burocracia.

Contemplando a fuga do Haiti, seus rostos mostram pouca esperança. “Do jeito que as coisas estão, não podemos ter uma pausa”, disse Merline. “Não podemos sair do país e não podemos viver em segurança dentro dele”.

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