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Justiça Militar diz que erro na denúncia absolveu tenente-coronel de crimes sexuais, mas reconhece sofrimento de vítimas

‘Doutor Bacana’, que é médico e militar, foi acusado de atentado violento ao pudor e assédio contra 30 mulheres em batalhões; defesa do militar nega os crimes. MP contesta que houve equívoco e diz que absolvição não era cabível.

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O tenente-coronel Fernando Dias Lima é médico da PM do Paraná desde 2009 — Foto: RPC/Reprodução
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A Justiça Militar alegou erro da promotoria na denúncia ao absolver o médico e tenente-coronel da Polícia Militar do Paraná (PM) Fernando Dias Lima, conhecido como “Doutor Bacana”, acusado de atentado violento ao pudor e assédio sexual contra 30 mulheres em consultórios de batalhões.

O G1 Paraná teve acesso com exclusividade à sentença do caso, que tramita em sigilo. A decisão de 205 páginas, assinada pelo juiz Leonardo Bechara Stancioli, da Vara da Justiça Militar, é da quarta-feira (30). O julgamento ocorreu em Curitiba na quinta-feira (24) e durou cerca de 12 horas.

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A defesa do tenente-coronel nega os crimes. Veja o posicionamento dos citados no fim da reportagem.

Apesar de reconhecer as acusações e o sofrimento das vítimas, o juiz afirma que o crime de atentado violento ao pudor, conforme previsto no Código Penal Militar, requer a violência física ou grave ameaça para ser configurado. Para ele, conforme provas e depoimentos, isso não ocorreu.

“Não se está dizendo, registra-se, que não existiram as condutas praticadas pelo acusado, e nem mesmo que as vítimas não sofreram as angústias dos atos a que foram submetidas, sendo certo que pela carga emotiva de suas palavras, pelas expressões corporais, pela dor que carregam em seu interior, certamente guardarão as marcas e cicatrizes dos mencionados constrangimentos, o que se aduz aqui é que o órgão de acusação imputou, erroneamente, os crimes porventura praticados pelo denunciado”, diz trecho.

De acordo com a sentença, a promotoria sustentou a existência de “ameaça silenciosa” e aproveitamento do “estado de vulnerabilidade determinado pela hierarquia”, além de “constrangimento profundo e depressão psicológica”.

“Restou-se, na visão deste magistrado, cabalmente demonstrado que durante as consultas médicas, o denunciado, de forma reiterada, valia-se da condição de médico, e não de superior hierárquico, para tocar nas partes íntimas das ofendidas e esfregar, por vezes, seu membro sexual nos referidos corpos, com objetivo, ao que se verifica, de satisfazer seus desejos lascivos”, afirma.

O MP-PR aponta mais de 40 vítimas do “Doutor Bacana”. No processo, foram investigadas 30 denúncias, de 2011 a 2018, sendo a maioria de mulheres da corporação, de diferentes patentes. Quatro vítimas são mulheres de militares.

Entenda a absolvição

A absolvição dos crimes sexuais ocorreu por unanimidade por parte Conselho Especial de Justiça, formado pelo juiz que assina a sentença e quatro coronéis da PM. Desde que o caso foi denunciado, no fim de 2018, houve sete trocas dos militares que integram o conselho.

Dos cinco julgadores, quatro votaram pela absolvição dos crimes sexuais com base na “inexistência do fato” ou por “não haver prova da existência”. Apenas um militar votou com a justificativa de “não constituir o fato infração penal”.

Neste caso, o militar acolheu a tese apresentada pelo acusado, quando interrogado em juízo, de que sofreu perseguições do então encarregado pelo Inquérito Policial Militar (IPM).

O juiz Leonardo Bechara Stancioli afirma ainda na sentença que, uma vez ausentes a violência física e a grave ameaça, os crimes imputados ao tenente-coronel poderiam se enquadrar – com base no Código Penal comum – em importunação sexual.

“No entanto, o mencionado crime foi esculpido pela Lei nº 13.718, a qual entrou em vigor somente em 24 de setembro de 2018, ou seja, em data posterior aos fatos aportados com a denúncia, razão pela qual não alcançaria as condutas praticadas pelo réu”, explica o magistrado.

Na avaliação do MP-PR, o atentado violento ao pudor se justiça pela “grave ameaça psicológica silenciosa” decorrente do medo das vítimas em noticiar as condutas.

Segundo a promotoria, ao não concordar com a existência de grave ameaça, a absolvição não seria uma medida cabível, mas sim a “desclassificação para o tipo penal de assédio sexual, no tocante às condutas antes caracterizadas como atentado violento ao pudor”.

‘Ele acabou com a minha vida’

Em outubro de 2019, o Fantástico conversou com mulheres que denunciaram o tenente-coronel. O processo envolve 30 vítimas, sendo 23 denúncias de atentado violento ao pudor e sete de assédio sexual, mas o MP-PR afirma que são mais de 40 denúncias.

“Ele esfregava a genitália na perna, ele apalpava, ele agarrava assim”, disse uma policial militar. “Esse cara, ele acabou com a minha vida. Acabou”, afirmou outra vítima.

Os depoimentos das vítimas e testemunhas no processo indicam que o médico tinha por costume abraçar as mulheres da corporação, elogiá-las nas consultas e chamá-las de “amadas”, diferente do tratamento de outros oficiais da PM.

Parte das vítimas relatou que o tenente-coronel trancava a porta para fazer os atendimentos. Em todos os casos, os depoimentos dão conta de que ele se aproveitava do atendimento para se esfregar nas mulheres. Uma das vítimas disse que saiu do consultório com a intenção de cometer suicídio.

“Ele mesmo abriu minha calça ao invés de pedir para que eu fizesse isso. Eu estava ali por um motivo de dor no estômago, ele apalpou toda região do meu abdômen, inclusive tocando nos meus seios”, contou uma das vítimas, que é mulher de um policial militar.

Um policial militar ouvido como testemunha contou que certa vez questionou outros colegas sobre como funcionava o atendimento médico no quartel, em Cascavel, no oeste do Paraná, porque a mulher dele precisava de uma consulta.

“Eu tinha recém chegado e não sabia como funcionava, e percebi que os policiais começaram a tirar sarro dizendo: ‘se ela for você precisa ir junto, não deixa tua mulher ir sozinha'”, afirmou.

Em interrogatório judicial, o tenente-coronel contou que não achava inconveniente elogiar as pacientes durante as consultas médicas, pois a “maldade está nos olhos de quem vê”.

Quem é o ‘Doutor Bacana’?

Fernando Dias Lima é médico da PM desde 2009. Antes disso, tinha sido vereador de Cascavel e candidato a vice-prefeito da cidade com o nome de Fernando Bacana. Nos quartéis, ele é conhecido como “Doutor Bacana”.

Além de consultas regulares, Lima prestava atendimentos de emergência dentro dos quartéis e validava para a PM atestados assinados por médicos civis.

Em maio de 2018, o médico foi preso preventivamente, mas acabou solto dez dias depois se comprometendo a não deixar a região de Cascavel, no oeste do estado, não usar armas e a se afastar da função pública que exerce.

Conforme a denúncia, os crimes foram cometidos durante consultas nos quartéis em Cascavel e Foz do Iguaçu e na Academia Policial do Guatupê, em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba.

O militar está afastado da função pública, mas continua recebendo salários. Conforme o Portal da Transparência do Governo do Paraná, ele tem dois vínculos ativos – como tenente-coronel e como promotor de saúde profissional – com vencimentos mensais de R$ 29.323,76.

Sumiço de prontuários médicos

No mesmo processo, “Doutor Bacana” foi condenado a 1 ano e 3 meses por supressão de documentos públicos, crime previsto no Código Penal Militar. A pena foi convertida em multa de cinco salários mínimos.

Os juízes reconheceram que ele ordenou, já afastado da função pública, que uma subordinada buscasse os prontuários médicos que estavam em um consultório, dentro do batalhão. No processo, há imagens da policial retirando uma caixa com itens da sala.

No processo, há imagens da policial retirando uma caixa com itens que estavam em um consultório usado pelo "Doutor Bacana" — Foto: Reprodução
No processo, há imagens da policial retirando uma caixa com itens que estavam em um consultório usado pelo “Doutor Bacana” — Foto: Reprodução

Conforme a decisão, 15 prontuários foram encontrados na casa do médico durante o cumprimento de um mandado de busca e apreensão. Desses, alguns eram de mulheres que o denunciaram.

“Por mais que o denunciado argumente que os prontuários médicos sejam de responsabilidade do médico e que apenas queria saber do que estava sendo acusado, aquele não tinha a responsabilidade total sobre eles, ainda mais serem objetos de uma investigação em andamento”, disse o juiz.

O que dizem os citados

Defesa do tenente-coronel Fernando Dias Lima

O advogado Zilmo Girotto afirmou que o médico foi absolvido porque não existiu crime, mas que só vai se pronunciar após a decisão definitiva do processo, que tramita em sigilo.

Ministério Público do Paraná

“Os fatos se amoldaram aos crimes de atentado violento ao pudor (art. 233 do Código Penal Militar) e assédio sexual (art. 216-A do Código Penal Comum), motivo pelo qual a denúncia foi oferecida nos termos de ambos os tipos penais, a depender das circunstâncias de cada conduta, as quais foram analisadas individualmente, conforme as diferentes situações relatadas pelas vítimas.

A suscitação de equívoco nos fatos imputados na inicial acusatória, em absoluto, não procede, mostra-se descabida e não encontra respaldo nos autos e sequer no conteúdo da sentença, pois, se assim o fosse, bastaria ao Juízo abrir vistas dos autos ao Ministério Público para proceder ao aditamento (à retificação) da denúncia, para alterar a tipificação penal dos delitos, ou mesmo, poderiam os julgadores desclassificaremos crimes para o tipo penal previsto no art. 216-A do CP, uma vez que todas as circunstâncias afetas ao assédio sexual já se encontram implícitas na própria descrição dos atos libidinosos.

Primeiramente, o Ministério Público reitera a configuração plena dos delitos de atentado violento ao pudor, devido à presença de grave ameaça psicológica, silenciosa, decorrente do temor das ofendidas em noticiarem as condutas cometidas pelo réu, tenente-coronel, oficial-médico da Polícia Militar e seu superior hierárquico; e, também, reiteram-se as provas robustas a comprovar os crimes de assédio sexual, cometidos também em virtude da superioridade hierárquica.

Contudo, se os cinco julgadores chegassem à conclusão diversa quanto à existência de grave ameaça, a absolvição certamente não seria a medida cabível, mas sim, a desclassificação para o tipo penal de assédio sexual, no tocante às condutas antes caracterizadas como atentado violento ao pudor.

Assim, pelos motivos acima expostos, inexiste fundamentação lógica e jurídica na tese utilizada pelo respeitável Juiz de Direito e os quatro coronéis julgadores, convergente à atipicidade dos fatos cometidos pelo tenente-coronel Fernando Dias Lima, pois a providência adotada pela legislação processual, em situações nas quais o magistrado discorda do Ministério Público quanto à definição dos crimes imputados na denúncia, não é a absolvição, mas sim, tão somente, a abertura de vistas ao Ministério Público para proceder ao aditamento dos fatos, ou à desclassificação dos delitos para tipo penal diverso. Trata-se de instituto jurídico conhecido como emendatio libelli.

Nesses termos, ressaltamos: em sede de recurso, o Ministério Público buscará afastar a versão inverídica atinente a um alegado erro na peça acusatória, além de outros aspectos da sentença que esta 1ª Promotoria Militar, respeitosamente, considera equivocados”.

Polícia Militar

“O Tenente-coronel médico citado na reportagem foi absolvido pelo Conselho Especial de Justiça Militar pelo crime militar de atentado violento ao pudor (artigo 233 do CPM) e do crime comum de assédio sexual (artigo 216-A do CP). No entanto, foi condenado a 1 ano e 3 meses pelo crime de fraude processual (artigo 347 do CP), em primeira instância cabendo recurso ao Ministério Público junto ao Tribunal de Justiça do Paraná.

Contudo, na esfera administrativa e disciplinar da PM-PR o referido oficial respondeu ao Conselho de Justificação n° 003-2018 o qual se encontra no Tribunal de Justiça do Paraná aguardando a confirmação da decisão do Comando-Geral da PM-PR que indicou a perda da patente de tenente-coronel por ser indigno para o oficialato da Polícia Militar.

Por fim, cabe informar que o referido tenente-coronel continuará afastado de suas funções até o trânsito em julgado do Conselho de Justificação.”

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